Corpo do artigo
Eça de Queirós terá sido o primeiro, aqui, a escrever sobre a caricatura (1867). Rafael Bordalo Pinheiro (RBP) foi o primeiro jornalista a criar, no Mundo, a figura arquetípica de um povo. O zé-povinho faz 150 anos. Nasceu no jornal “Lanterna Mágica” (junho 1875) e foi-se apurando como símbolo. Inigualável.
Do talento de RBP, rios de humor. Ele sabia “ser truculento, caprichoso, cassoista, cruel uma vez ou outra, quasi sempre risonho, quasi sempre bom até nas maldades” (J.C. Machado).
A figura icónica vibra. Pasmado, rezingão, passivo, sonso, desconfiado e, por vezes, revoltado – símbolo maior da criação jornalística de humor. O “Soberano” (Álbum das Glórias) carrega a albarda do Estado. Quase sempre esmagado por ela. Uma vez, na celebração camoniana de1880, atira com a albarda ao ar. Teófilo Braga diz do gesto: “o povo é capaz de se mover por uma ideia”. Eflúvios que amolecem… Para Magalhães Lima, 1888, o Zé era o símbolo da “sociedade aviltada” por sucessivos governos que tinham como fim “a miséria e a ignorância”, ingredientes para reinar.
Diversos artistas tomaram o Zé como seu. Décadas. De Sanhudo a J.A. Manta, passando por F. Valença ou Leal da Câmara, entre outros. Bom mote. Até hoje.
Se Eça disse que a caricatura é “o meio mais poderoso de desacreditar… os maus governos”, RBP fez do Zé um espelho nosso. Eça e Bordalo cruzaram olhares na análise da sociedade. Desiludido com promessas de uns e engodos de outros, Zé Povinho é muito desconfiado. Eça, jornalista de 21 anos, em Évora, dizia que aquilo que nos mata, como povo, é a desconfiança. “O povo, simples e bom, não confia nos homens que hoje tão espetaculosamente estão meneando a púrpura de ministros; os ministros não confiam no Parlamento, apesar de o trazerem amaciado, acalentado com todas as doces cantigas de empregos…; os eleitores não confiam nos seus mandatários, porque lhes bradam em vão – sede honrados”… Mais: “Esta desconfiança perpétua leva à confusão e à indiferença”.
As palavras de Eça são do início de RBP. A sintonia perdura. Hoje, lê-se Eça cronista e vê-se Bordalo caricaturista. O Zé parece ser a simbiose de ambos, no retrato do país. De um tempo que continua para além do tempo.
Se o virmos como o “eterno espectador”, a atualidade é maior. Em sintonia com análises de hoje: quem vota em eleições são “públicos” e não eleitores, como há 30 anos. Ou seja, quem vota são “Zés espetadores”. Resultado dos discursos mediáticos, das redes, da “ecrãvidência”…
Por isso, anda cá, Zé Povinho! Queres mudar?