Proposta de Fábio (Krayze) Januário incendiou DDD, na véspera do feriado. Espetáculo tem nova récita esta sexta-feira, na Mala Voadora, no Porto, às 17 horas e é absolutamente imperdível.
Corpo do artigo
Fábio (Krayze) Januário, Selma Mylene, Xenos Palma e Elvis Carvalho (Grelha) deram uma festa inesquecível na Mala Voadora, festa de resistência, e uma lembrança boa do lugar de onde se veio e do lugar onde ainda se é. Ver "Musseque" na véspera do 25 de abril tem uma ressonância ainda mais forte.
Há espetáculos que se escrevem com luzes e efeitos. “Musseque” escreve-se com ritmo, suor e verdade. Antes de tudo, Musseque é casa. E casa não se explica — sente-se. É nas batidas rápidas do kuduro que o espetáculo se levanta, como se os corpos quisessem rasgar o ar com alegria. Há energia que ferve, movimentos que explodem, um pulsar que atravessa tudo. Não é nostalgia: é celebração viva da força que vem das periferias de Luanda, onde se improvisa, se resiste e se dança como quem conquista o mundo com os pés.
O palco onde o público deambula torna-se bairro — não literal, mas emocional. Espaço de reencontro e de cumplicidade entre os quatro intérpretes, que partilham o corpo como se partilhassem uma memória comum. E talvez partilhem mesmo. Porque ali ninguém dança sozinho: há sempre um olhar cúmplice, uma vibração conjunta, um eco de festa que não termina.
A linguagem está no quadril, no salto preciso, no ombro que marca o compasso. Cada gesto é uma gargalhada atravessada pela história, cada passo é memória que se aviva em movimento. E é impossível ficar indiferente. O público abana a cabeça, sorri, sente que também faz parte.
Há momentos de tensão, sim. A guerra, a luta, a dureza estão presentes — mas não dominam. Porque aqui a narrativa não termina no trauma: vai além. Dança-se também para viver, para inventar futuro, para fazer da dor matéria de festa.
No fim, “Musseque” é um abraço quente — desses que vêm do sul, da rua, da infância suada. Uma afirmação de alegria como força política. Porque às vezes resistir é mesmo isso: continuar a dançar.
Kuduro é o motor — não como estilo, mas como gesto político. Aqui, o ritmo não é entretenimento, é pulsação vital. Os corpos dançam com uma urgência crua, como se cada batida fosse um pedaço de história arrancado ao silêncio.
“Musseque” é memória feita músculo. Os quatro intérpretes não encenam uma ideia: encarnam uma realidade. Cada passo tem peso, cada deslocação traz consigo o pó da infância, os ecos da periferia, a força de um lugar que se resiste a ser esquecido. É como se os corpos carregassem mapas invisíveis da Luanda que ficou — a que se vive, a que se sofre, a que se grita.
Há momentos em que o ritmo é tão veloz que se torna vertigem. Outros em que a pausa chega como um silêncio que estala no osso. Nada aqui é gratuito. Tudo tem densidade, memória, ferida.
A presença dos quatro em palco é coletiva mas nunca homogénea. Cada um carrega a sua própria geografia interna. E no entanto, há um lugar comum: a resistência. Resistência ao esquecimento, à despersonalização, à história contada por outros. É ali, naquele palco, que os corpos se afirmam como território político.
No fim, não aplaudimos uma peça. Aplaudimos a força de quem, através da dança, continua a dizer: eu vim daqui — e continuo aqui.