A Associação Último Recurso formalizou, esta segunda-feira, um processo em tribunal contra o Estado português por inação climática, que acusa de não cumprir com os prazos estabelecidos para implementar a Lei de Bases do Clima.
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O Estado português vai ser alvo de um processo judicial por inação climática. A ação civil, anunciada ainda em 2022, foi formalizada esta segunda-feira, no Tribunal Civil de Lisboa, pela Associação Último Recurso, com o apoio das organizações Quercus e Sciaena, que assinaram conjuntamente o pedido. As organizações acusam o Estado de falhar na aplicação da Lei de Bases do Clima devido à falta de medidas para aplicar a lei, nomeadamente com vista à criação de um orçamento de carbono, um portal de ação climática, um plano nacional de energia e clima e planos setoriais de mitigação.
Ao JN, a presidente e fundadora da Associação Último Recurso, Mariana Gomes, salientou que os prazos definidos na lei não estão a ser cumpridos, correndo o risco de se violar outros direitos constitucionais, como o direito à vida. “Estamos a falar da maior crise que a humanidade alguma vez enfrentou, e, por isso, envolve esforços grandes. Portugal tem até 2030 para reduzir 50% das emissões de gases com efeito de estufa. Tendo em conta que foram precisas pelo menos duas décadas para alcançar uma redução de 30%, 20% nos próximos anos é bastante. Isso implica uma redução de 3% por ano. Temos que agir imediatamente”, alertou. Recorde-se que a Lei de Bases do Clima foi aprovada, na Assembleia da República, a 5 de novembro de 2021, e promulgada a 13 de dezembro desse ano pelo Presidente da República.
A responsável explicou que a associação tentou que existisse um diálogo prévio para que fossem dados passos, através de pedidos de reunião a partidos políticos, ao Ministério do Ambiente e uma carta aberta ao Presidente da República, no entanto, “nenhuma porta foi aberta”. Esgotadas todas as vias não judiciais, decidiram seguir com o processo. “Não há outro mecanismo na nossa sociedade no qual seja possível e legítimo aplicar uma lei através de uma sanção”, justificou Mariana Gomes. Este é, assim, o primeiro caso de litigância climática em Portugal, em que se pede, através do direito, medidas climáticas mais eficazes.
Com as decisões judiciais que podem sair deste processo, as organizações esperam que o Governo seja obrigado a reduzir emissões de gases de estufa e a adotar medidas políticas mais ambiciosas no combate à crise climática. No pedido que entregaram esta segunda-feira ao tribunal, as associações exprimiram o desejo de o Governo ter de cumprir tudo o que está previsto na legislação durante os três meses após a decisão judicial, sob pena de enfrentar sanções se não o cumprir, apontou Mariana Gomes.
Perante o alegado incumprimento dos prazos e a emergência em responder à crise climática, a responsável acredita que têm “o fundamento jurídico e também científico” para colocar esta ação e para que esta seja aceite pelo tribunal. Dado o rumo dos últimos dois anos creem até que “mesmos os prazos para 2024 não devem ser cumpridos”. Para a jovem estudante de Direito, tornou-se importante envolver o tribunal para mostrar “que não são só os ativistas, as associações e a sociedade civil a considerar que o Governo não está a fazer o suficiente, mas um juiz quem o irá também dizer”.
Apesar de ser a primeira vez que um tribunal português recebe um caso que relaciona o direito diretamente com as alterações climáticas, Mariana Gomes está confiante de que a condenação saia em defesa da crise climática, acreditando que os casos vitoriosos noutros países europeus “terão um peso na decisão dos juízes”.
“À partida será preciso ouvir o que é que já foi feito lá fora, uma vez que a ciência climática não é uma matéria que vive nos tribunais todos os dias. Esses casos têm impacto definitivamente em Portugal. Consequentemente, a decisão for tomada em Portugal, também terá impacto nas ações futuras, quer seja dentro ou fora do país”, resumiu.
Segundo a Associação Último Recurso, a representação judicial nesta ação está a cargo do advogado Ricardo Sá Fernandes. As associações pediram ainda que várias figuras importantes na área climática, das quais sentem que existe um apoio formal, possam ser chamadas para testemunhar no processo, como o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, bem como investigadores e cientistas que integram, nomeadamente, o IPCC - Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas.
Esta não será a única ação aberta pela associação que, como explica Mariana Gomes, além do Estado, pretende obrigar grandes empresas em Portugal, como a Galp e a Navigator, a cortar emissões para que seja possível manter o aumento da temperatura do planeta abaixo dos 2ºC, o principal compromisso traçado no Acordo de Paris, em 2015.
A Associação Último Recurso surgiu em 2022 e quer usar os meios legais como ferramenta para responsabilizar aqueles considerados os principais contribuidores para a crise climática e a degradação de ecossistemas em Portugal. Segundo a organização, o caso agora concretizado junta-se a mais de 2300 processos em todo o mundo que contestam as respostas dos governos à crise climática. Casos como os que têm ocorrido na Europa, como nos tribunais nos Países Baixos, Irlanda e Alemanha que decidiram que a ação climática é um dever legal dos governos, serviram de inspiração à ação civil.