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Na mesma semana em que Manuel Maria Carrilho (condenado em tribunal por violência doméstica) lança um livro chamado “A nova peste – da ideologia de género ao fanatismo woke”, completa-se a piada (que já se fazia sozinha) com o facto irónico de dois homens brancos hetero cis terem levado uma humorista a tribunal.
É que muito se clama contra os excessos das lutas identitárias, contra a falta de sentido de humor das feministas, contra o fundamentalismo dos antirracistas, mas aqui em Portugal (e não nos EUA ou no Brasil, de onde costumam vir os exemplos que engrossam os clamores), quem está a ser julgada em tribunal é uma mulher. E não é por ter proferido discursos de ódio (porque esses têm lugar no Parlamento), nem por ter cometido alguma gafe imperdoável nos tempos do policiamento da linguagem e do politicamente correto.
No tempo do “já não se pode dizer nada”, uma mulher humorista vai a tribunal por ter ferido o ego de dois homens brancos hetero cis e não há nada que pertença mais à velha lógica (ou à velha peste, para responder a Carrilho) do que uma mulher ser castigada por expor homens ao escárnio. Os estudos demonstram que, enquanto as mulheres têm na violência o seu maior temor, os homens temem ser ridicularizados, sendo esse medo (aparentemente infantil) a causa de muitos atos violentos e profundamente machistas.
Ser alvo de chacota perante a comunidade e ter as falhas expostas publicamente é o que há de mais assustador para a masculinidade normativa. Muitos comportamentos abusivos e de imposição de controlo nas relações, atos de violência doméstica e até crimes passionais, têm como base o pavor de ser alvo de traição, de ser o “corno” e de ter essa “fraqueza” exposta para escárnio coletivo. Não há nada de mais velho e bafiento do que esse medo, do que essa obtusa masculinidade, que põe a ideia de honra e de reputação, além da projeção de uma aura de infalibilidade, acima da integridade física e da liberdade das mulheres (em casos de violência conjugal) e do sentido de humor e da liberdade de expressão de uma mulher (neste casinho dos Anjos) – e não se subestime o facto de ser uma mulher a autora da piada!
Há quem diga que o ego e a autoestima do homem branco hetero cis deviam ser estudados pela NASA, dada a tendência para a hipérbole megalómana mesmo em casos em que há pouco fundamento. Mas, como este caso revela, a masculinidade normativa é mais vezes frágil do que inabalável, já que se fosse sólida não se assustaria com gargalhadas, mesmo que as achasse injustas. Perceberia, em vez disso, que sendo falível como é da condição humana, deve autorizar o erro e a vulnerabilidade, assim como o sentido de humor (que é afinal a melhor maneira de lidar com a inevitabilidade da falha) e que ridículo não é quem erra, nem quem é alvo de piada, mas antes quem se leva demasiado a sério e ainda faz birra para se vitimizar.