Nuno Cardoso ausculta a identidade portuguesa num espetáculo que cruza “Os Lusíadas” com histórias de cidadãos. Estreia esta terça-feira no Teatro Carlos Alberto, no Porto, e tem récitas diárias até sábado.
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Se em 2012, em plena austeridade e com um primeiro-ministro que incitava os portugueses a emigrarem, Nuno Cardoso concebeu “Porto S. Bento”, espetáculo sobre “a cidade dos que partem”, em 2025, em plena explosão do turismo e dos fluxos migratórios, o encenador idealizou “Babel”, criação apoiada em “Os lusíadas” que fala sobre “a cidade dos que chegam”.
É novamente num interface de transportes que se encontram as personagens, aguardando, enquanto desfiam as suas histórias, dificuldades, motivações. Foram selecionadas em ateliers realizados entre fevereiro e abril no Mosteiro de São Bento da Vitória.
Com variados graus de experiência teatral, representam a atual diversidade do tecido social do Porto – seis nacionalidades onde cabem estudantes, reformados, artistas ou médicos. São acompanhados em palco por dois atores profissionais – Sérgio Sá Cunha e Telma Cardoso – e seis jovens músicos de bandas filarmónicas da região Norte.
Foi-lhes pedida uma dupla tarefa, explica Cardoso: “Que criassem uma personagem ficcional a partir das suas experiências pessoais e dos discursos que ouvem, e que revelassem a sua própria identidade e aquilo que pensam.”
Os textos foram criados pelos participantes, cabendo ao encenador, que assume também a dramaturgia, os figurinos e a cenografia, a moldagem formal dos discursos e o seu enquadramento na dimensão mais vasta da obra que atravessa “Babel” – “Os lusíadas”, que vão sendo ditos pelos dois atores. Longe de transpor o texto integral de Camões, interessou a Cardoso percorrer, em cotejo com a vida das personagens, episódios significativos da epopeia, como o Velho do Restelo, o Adamastor, Inês de Castro ou a Ilha dos Amores.
Para o ex-diretor do Teatro Nacional São João, para quem Babel sempre significou “tumulto”, o objetivo foi refletir sobre a atual identidade do país e sobre a realidade da vida dos que chegam. Muitos dos pontos mais negros da acelerada transformação da cidade – e do país – são ressaltados, como a xenofobia, a exploração dos imigrantes ou a cavalgada na especulação imobiliária. De modo geral, os participantes “construíram personagens de que não gostam”, diz o encenador.
Uma delas é o “guna do bairro do Lagarteiro”, interpretado pelo moçambicano Edilson Wa Ka Chambe, médico de 30 anos que se inscreveu num mestrado na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Com currículo teatral resumido a algumas experiências escolares, participou por curiosidade no atelier e decidiu aderir depois de ter visto “Hamlet”, encenação recente de Nuno Cardoso. “Vim para o Porto há dois anos e houve várias situações em que senti racismo”, conta Edilson.
“A minha personagem é também um racista, mas admito que exagerei no discurso. Hoje sinto-me bem integrado e planeio viver no Porto nos próximos anos. O mais importante no espetáculo foi dar uma diversidade de perspetivas sobre o que é viver hoje nesta cidade”, conclui.
Já Luísa Costa, assistente social reformada de 71 anos, portuense, deu vida à “Zirinha da Ribeira”, “uma daquelas mulheres graníticas da cidade que resistem a tudo”, explica. Acredita na atualidade do texto de Camões – “fala de imensos problemas que subsistem” – e que a integração depende sempre de um esforço das duas partes – dos que estão e dos que chegam.
O espetáculo sobe esta terça-feira ao palco do Teatro Carlos Alberto, no Porto, e tem récitas diárias até sábado. As sessões são às 19 horas, exceto na sexta-feira (21 horas). "Babel" tem a duração aproximada de 90 minutos.