Um rei que pode ser Trump, Bolsonaro ou Kim Jon-un. "Ubu" está nas salas de cinema
Adaptação da peça icónica do francês Alfred Jarry, escrita em finais do século XIX mas de enorme atualidade, “Ubu”, de Paulo Abreu, é uma reflexão sobre o poder autocrático. E um manual de como fazer um filme de época com os meios do cinema português.
Corpo do artigo
Evocando as adaptações clássicas que Orson Welles fez de Shakespeare e contando com a cumplicidade de Miguel Loureiro e Isabel Abreu, “Ubu” mostra como o cinema português está vivo. Cabe agora ao público mostrar também prova de vida.
Como é que descobriu a peça de Alfred Jarry?
Sempre ouvi falar muito nesta peça. E há uns anos o Ricardo Aibéo, que já tinha feito uma encenação para teatro, já tinha tentado fazer uma adaptação para cinema, que depois não avançou. Entretanto li outra vez a peça e vi vários filmes, como uma versão de 1965, do Jean-Christophe Averty, que é a versão mais fiel da peça original, e algumas animações. Passados alguns anos o André Gil Mata, um cineasta meu amigo que é do Porto, começou a instigar-me a tentar. A primeira adaptação que fiz foi ainda com ele.
Como é que chegamos a esta versão sua?
Quando finalmente tive o apoio, achei que o mais interessante seria ir para o lado oposto, fugir ao grotesco das máscaras, como eles usavam na peça original, e onde os cenários eram muito vazios. Aquilo devia ser muito forte no teatro, mas achei que não ia resultar em cinema, para além de já ter sido feito. Decidi então apostar nesta abordagem diria que neoclássica, com uma imagem que remetia para os filmes shakespearianos.
Os filmes de Orson Welles foram uma referência explícita?
Foi uma das que dei ao diretor de fotografia, o Jorge Quintela. Dei essa, o “Ivan, o Terrível”, “A Fonte da Virgem”. O que as pessoas associam mais é o “Falstaff”, do Welles.
Esse olhar absurdo sobre o real, vem só da peça ou cola bem com o seu universo?
Eu acho que cola bem, por isso é que o André se lembrou de mim. Esta é a minha primeira longa de ficção, mas até aqui fiz sempre curtas ou documentários que ou são “mockumentaries” ou têm um certo grau de humor. Ou ironia.
O lado cénico do filme é muito importante…
A primeira vez que a peça foi apresentada foi com marionetes. Quando ele a apresenta pela primeira vez com atores, em 1896, causou um grande escândalo, precisamente pelo comportamento dos atores. Como se fossem marionetes, mas com aquela violência um bocado cómica. Extrema, mas ao mesmo tempo ridícula. As pessoas não estavam preparadas para isso. Eu tentei fazer um bocado isso, mas tentando dar um aspeto mais credível, ao nível dos cenários e do guarda-roupa.
O filme ultrapassa muito bem as dificuldades de fazer por cá um filme de época.
Sabíamos que não íamos ter muito dinheiro para fazer o filme. E já que estávamos neste universo do absurdo, optámos por transformar as dificuldades numa mais-valia. Só para dar um exemplo, o máximo de figurantes que tivemos na batalha foram sete. E não se podia ver a cara, porque supostamente deviam ser todos iguais. Podia filmar a fingir que eram muitos. Mas optei por ter lutas mais ridículas, para ser coerente com o texto.
E a escolha dos cenários, como é que se processou?
Demorámos imenso tempo a encontrá-los. Como a ação se passa numa Polónia inventada, não podia ser o Portugal dos castelinhos com ameias. Não foi fácil, com o dinheiro para uma primeira obra.
Até que ponto o filme fala também dos tempos que vivemos?
Essa foi uma das razões porque achei que era boa ideia fazer o filme na altura. Estavam no poder o Trump, o Bolsonaro, o Kim Jong-un, inúmeros políticos mundiais muito parecidos com o Ubu, na maneira de ser. Se calhar o Trump ainda é o mais parecido. E agora temos o Milei na Argentina, que também tem características do Ubu. Foi engraçado porque o filme estreou mundialmente na Argentina, uma semana antes das eleições. E recebi uma mensagem do tradutor da cópia a dizer: “o Ubu ganhou!”.
Pode falar um pouco na escolha do Miguel Loureiro e da Isabel Abreu?
Eu já os conhecia muito bem como atores. E o mais importante é que os dois já tinham feito Shakespeare. E até já tinham contracenado juntos. Como a peça era também uma paródia à forma como se via Shakespeare na altura, e em alguns lados ainda hoje, achei que eram a escolha certa. Apesar da Isabel Abreu não ter nada a ver com a senhora Ubu, que é muito gorda. Ela acaba por ser uma espécie de caricatura da Lady Macbeth.
E há também o João Grosso…
Foi o Miguel que o sugeriu. Eu estava com alguma dificuldade em encontrar alguém que tivesse aquele carisma. O Dinarte Branco e o Ivo Alexandre têm aquela dupla de um muito gordo e um muito magro dos filmes cómicos.
Como é que foram os ensaios, a preparação foi feita durante a pandemia.
Fizemos muitos ensaios por zoom, para nos distrair. E isso foi muito importante para encontrar o tom. Eles estão todos em cima, are o que o texto pedia. Era impossível fazê-lo em “underacting”. Experimentámos muito e acho que estão todos no mesmo tom, não está cada um a representar para o seu lado.
O filme apresenta-se como um desafio ao espectador, o que espera agora da estreia em sala?
Não sei, tenho alguma curiosidade. Quando passou no LEFFEST a reação foi muito boa, mas em festival a reação é sempre diferente. Mesmo o formato da imagem pode repelir as pessoas. Se eu fosse espetador e não o realizador, este filme ia atrair-me. Eu quereria ver este filme, mas não sei como é que as pessoas vão reagir.