Luta de Gisèle contra violência sexual resulta em 51 condenações. Marido condenado a 20 anos de cadeia
O marido de Gisèle Pelicot, violada ao longo de uma década, foi considerado culpado de todas as acusações e condenado a 20 anos de cadeia, a pena máxima para este tipo de crime. Um veredicto histórico. Além de Dominique Pelicot, mais de 30 arguidos foram considerados culpados de violação agravada.
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“Quero que saibam que partilhamos a mesma luta”. Foi assim que Gisèle Pelicot se dirigiu às “muitas vítimas que não são reconhecidas, cujas histórias permanecem nas sombras”, na saída do tribunal, ontem, em Avignon, no Sul de França. A condenação de 51 homens, incluindo o ex-marido Dominique, pelos casos de violação sexual cometidos durante uma década, foram recebidos com exaltação à vítima e, simultaneamente, protestos pelas penas anunciadas.
O antigo companheiro de Gisèle recebeu a maior pena possível pela lei francesa para os crimes que fora acusado (20 anos de prisão). Durante o julgamento, Dominique não negou que drogava a esposa com ansiolíticos e convidava desconhecidos através da Internet para ter relações sexuais enquanto a mulher estava entorpecida. Os casos de violência aconteceram entre 2011 e 2020.
“A única coisa que podemos fazer é recorrer e vamos aproveitar os dez dias que temos pela frente para determinar se queremos voltar a um julgamento com um júri popular”, afirmou a advogada de Dominique, Béatrice Zavarro. “O meu cliente sai deste processo com responsabilidade assumida e Gisèle Pelicot com dignidade”, completou.
O julgamento, iniciado a 2 de setembro e encerrado nesta segunda-feira, resultou na condenação de outros 51 indivíduos - 46 por violação sexual, dois por tentativa de violação e dois por agressão sexual. Algumas penas deliberadas pelos cinco juízes do tribunal de Avignon ficaram abaixo do tempo pedido pelo Ministério Público, que queria pelo menos 10 anos de prisão para todos os arguidos. Estes 50 condenados, com idades entre 26 e 74 anos, cumprirão penas de três a 15 anos, algumas das quais suspensas.
“Provação muito difícil”
“Respeito o tribunal e a decisão do veredito”, discursou Gisèle Pelicot aos jornalistas que se encontravam no tribunal. “É com profunda emoção que aqui estou, o julgamento foi uma provação muito difícil”, declarou a francesa, que referiu os três filhos e os sete netos como uma motivação para continuar a luta. “Porque eles são o futuro, é também por eles que enfrentei esta batalha”, destacou antes de citar as outras vítimas de agressão sexual.
“Quando abri a porta a este julgamento, no dia 2 de setembro, queria que a sociedade pudesse participar no debate. Nunca me arrependi dessa decisão. Tenho confiança na nossa capacidade de agarrar coletivamente um futuro em que todos, mulheres e homens, possam viver em harmonia, com respeito e compreensão mútuos”, ressaltou Gisèle.
Na saída do tribunal, uma multidão abraçou a perseverança da vítima. “Merci Gisèle”(“Obrigado, Gisèle”) foi o agradecimento pela luta iniciada há quatro anos, em imagens transmitidas pelo canal BFMTV. Junto do frenesim, de acordo com o periódico britânico “The Guardian”, apoiantes da francesa gritavam revoltados “vergonha da justiça” pela penas que foram deliberadas.
“A luta apenas começou”
“Sabíamos [que eram culpados] graças às provas em vídeo, que existiam felizmente, mas os advogados dos arguidos continuavam a tentar atirar as culpas para Gisèle”, analisou a jornalista e ativista feminista francesa Anna Toumazoff, em declarações à agência Lusa.
“Hoje, a vergonha mudou de lado, mas a luta contra a impunidade apenas começou”, salientou Anne-Cécile Mailfert, num comunicado da organização Fondation des Femmes, expressando “incompreensão e deceção com algumas das sentenças proferidas, que apesar das testemunhas e das provas, ficaram aquém das recomendações para violação agravada”. “É urgente adotar uma lei-quadro para uma proteção abrangente contra a violência sexual e baseada no género”, acrescentou .
A vítima que pôs a vergonha do outro lado
Gisèle Pelicot tinha uma história que parecia comum até o início de problemas de memória. A revelação da causa, há quatro anos, permitiu que a continuação do pesadelo cessasse e que se iniciasse uma batalha que inspira milhões de pessoas.
Nasceu em 1952, no Sul da Alemanha. Filha de pais gauleses, mudou-se para França com cinco anos. Com a morte da mãe aos nove anos, a jovem foi criada pelo pai militar.
Conheceu o futuro marido, Dominique, em 1971. Casaram-se pouco tempo depois e se mudaram para os subúrbios de Paris. Tiveram três filhos, David, Caroline e Florian.
A francesa tinha como sonho ser cabeleireira, mas fez um curso de datilografia. Teve uma carreira na EDF, empresa de produção e distribuição de energia, chegando a cuidar de um departamento de logística para centrais nucleares.
O início dos ansiolíticos
O casal chegou a divorciar-se em 2001, mas os dois continuaram a viver juntos e reataram o matrimónio em 2007. A partir de 2011, segundo Dominique, o marido começou a drogar a esposa, que suspeitava que sofria de problemas como Alzheimer. Depois da reforma, em 2013, foram viver na pequena cidade de Mazan, no Sul de França. Gisèle gostava de fazer caminhadas e cantar num coro.
O seu Mundo mudou completamente após Dominique ter sido apanhado a filmar por baixo das saias de mulheres num mercado, em setembro de 2020. A Polícia apreendeu telemóveis e outros dispositivos do indivíduo - que já tinha sido apanhado a fazer o mesmo ato em 2010. Dois meses depois, as autoridades revelaram a Gisèle os vídeos com as violações sexuais enquanto estava inconsciente. A vítima deixou Mazan, divorciou-se e começou a ação judicial - em que não se escondeu com o objetivo de fazer “a vergonha mudar de lado”, colocando-a sobre os agressores.v