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Todos os dias - se estivermos atentos - descobriremos que o Natal de muitos, quase todos, é, sempre, o Natal possível. Não o Natal sonhado ou idealizável.
Falo no Natal de crentes e não crentes, de várias crenças, das quais muitas não creem no Natal. Falo no Natal dos povos e, neles, nos milhões que nem sequer podem ter um dia em que a sua vida de miséria, de fome, de guerra, de exploração, de sofrimento, seja diverso de todos os demais. Por ser ligeiramente menos sofrido.
Falo no Natal das Comunidades, das Famílias, das pessoas, que, nem sequer, naquele dia, que para os que usam chamá-lo de Natal, podem esquecer uma doença, uma prisão, um luto, uma dor, uma ausência, uma saudade. Ainda que, sem essa presença, lhes fosse mais fácil de construir, ao menos, um pouco de Natal.
Para esses - que, em rigor, já não são a maioria esmagadora do universo, ou a minoria muito forte em tantas sociedades - mesmo para esses, o Natal fica convertido no Natal possível.
O Natal possível do marido ou mulher, do pai ou mãe, do filho ou filha, do irmão ou irmã, morto pelo desespero ou pelo fatídico encontro com terceiro.
O Natal possível de parente, do amigo ou amiga, do paciente, do recluso, do distante no mundo, do servidor da causa pública em missão nas mesmas lonjuras do universo. Mais perto de nós, vizinhos, formal ou informalmente cuidadores, sem abrigo, com abrigo e sem teto, sem emprego, sem esperança, sem razões para continuar a lutar.
O Natal possível, para uns, é, na verdade, impossível ou quase. Ou, então, é possível no tempo e no espaço em que a força de viver e a imaginação constroem ou reconstroem raízes, lembranças, sonhos, laços, afinidades, motivos de acreditar.
Nestes últimos dias, deparei com exemplos de tudo isso. Nas nossas comunidades distantes das famílias, a fazerem natais possíveis.
Nos nossos soldados perto de guerras ou conflitos, a evocarem gestos, textos, canções, comidas que possam matar saudades. Cá dentro, noutras comunidades onde a pobreza e a solidão ainda encontram um esconderijo para conviver e evocar pessoas e lugares motivadores.
Ou, então, comunidades vindas do outro lado do mundo, a mitigarem agruras pela duração de um instante. O Natal possível acaba por ser - por ter de ser - fruto de esperança e insatisfação feita luta por valores, por princípios e por causas concretas. A pessoa - cada pessoa, de carne e osso e sua dignidade.
A dignidade querendo dizer liberdade e igualdade. A liberdade determinando diversidade de ideias, pluralismo de modos de pensar e agir, tolerância, aceitação da diferença, recusa do monopólio da verdade. A igualdade exigindo a superação das discriminações injustas, os guetos, as exclusões, a perpetuação da pobreza de geração para geração. Não deixar morrer estes e outros valores e princípios e causas concretas de os fazer valer é encontrar um espaço para o Natal possível.
Para uns, com raízes numa Fé assente no divino, numa religião, numa comunidade de crentes. Para outros, com fundamento numa Fé, alicerçada no humano, numa filosofia, numa conjugação de convicções. Não importa.
Que esse sopro ecuménico atravesse o Natal possível, o Natal possível de 2024 - é o nosso voto mais fundo e mais fraterno.