Francesa há muito em Portugal, Justine Lemahieu realiza “As Fado Bicha”, filme que já está nos cinemas.
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Criado em 2017 por Lila Fadista e João Caçador, as Fado Bicha é um grupo de músicos e ativistas queer que se distinguem pela sua musicalidade, pela qualidade poética dos seus textos e pelo seu visual, criando ruturas com a visão mais clássica e tradicionalista da forma de expressão musical portuguesa por excelência. Justine Lemahieu, francesa de nascimento, mas portuguesa por adoção há mais de vinte anos, já realizara o documentário “Sousa Martins”, e andou com a sua câmara atrás do dueto ao longo de vários anos. O documentário “As Fado Bicha” já está nas salas de cinema e vai chegar esta semana ainda a mais pontos do país. Fomos ouvir a realizadora.
Como é que conseguiu convencer a Lila e o João a acompanhá-los durante tanto tempo?
Fiz-lhes uma proposta, foi só isso. Começámos e fomos aprendendo a conhecer-nos. Não foi preciso convencê-los. Apresentei-me e fiz-me de boazinha, como faço sempre,
A Justine não nasceu em Portugal, apesar de cá estar há bastante tempo. Que relação tem com o fado?
Eu gosto muito de fado. É uma adoção, não está enraizado na minha cultura, claro. Conheci o fado em Portugal. É um género musical que me toca profundamente. Conheci-o na Tasca do Jaime, na Graça. E gosto de fado não só pela música mas também pelo ritual. Nós precisamos de rituais, na sociedade, para estarmos juntos. É um ritual que acho muito bonito, na forma como pode reunir gerações, por exemplo.
As Fado Bicha são uma vertente muito alternativa do fado…
É verdade que o fado tem esse limite na sua forma dominante, tem regras de género muito rígidas. Mas, de vez em quando, as pessoas tentam, em função dos lugares, contornar esse limite. Também gostava de dizer que o fado foi muito criticado pelo seu lado machista, marialva, mas através do processo do filme achei importante estudar a história do fado.
O que descobriu, nesse processo de investigação, que a surpreendeu?
O filme foi também a base de um trabalho de tese de mestrado em antropologia, sobre transgressões, atrás do qual fui descobrir e estudar as questões de género e a história do fado. Era importante ganhar conhecimento a partir do momento de estar a fazer um filme sobra as Fado Bicha. Há um capítulo sobre as transgressões de género iniciais provocadas pelo fado. É muito interessante perceber que a história do fado é muito longa e complexa e esse marialvismo é muito ligado a uma forma que é herdeira do Estado Novo.
Na sua perspetiva, o que se passava antes desse regime?
A verdade é que o Estado Novo começou por criticar o fado. Também foi muito maltratado pelo regime, pela sua falta de virilidade. Antes do Estado Novo recuperar o fado o regime criticou-o muito. Uma das críticas dizia que o fado era demasiado feminino, que era uma canção de vencidos, onde as pessoas choravam e que a verdadeira canção nacional era o canto rural, o folclore. O fado também era muito criticado por ser mestiço, por estar ligado a formas de decadência.
No processo de criação do documentário, a que vertente cinematográfica foi beber?
Há pouco tempo comecei a pensar nas minhas referências. O cinema é muito dominado pelos homens. Reparei que muitas das minhas referências são masculinas. Isso tem a ver com o próprio sistema do cinema. Eu tenho uma particular paixão, que vem da adolescência, porque a minha cinefilia vem daí, pelo cinema de terror, pelos filmes de zombies. Eu também tenho os meus segredos.
Há alguns autores de que goste em especial?
Tenho uma ligação muito forte com o cinema do John Carpenter. Também gosto muito do Paul Verhoeven. Foi um cinema que marcou a minha adolescência. O cinema de zombies é um cinema muito político e eu gosto de uma relação com o cinema que seja estética, mas também da ligação que o cinema tem com as pessoas, com a sua forma popular. Há muita qualidade também no cinema popular, não é só no cinema erudito. Eu revejo-me nos dois tipos de cinema.
E cinema português, o que tem visto que mais a impressiona?
Para dar uma referência mais recente de um filme feito por uma mulher em Portugal, gostei do “Alma Viva”, da Cristèle Alves Meira. Foi um filme que me comoveu. Também gosto muito do João Canijo, o trabalho dele está muito ligado à sua colaboração com mulheres.