O combate político sempre contaminou as reivindicações de vários sectores do mundo laboral, pelo que esse transvase em nada surpreende. Pelo contrário, é precisamente pela falta de tomada de perspectiva política que uma boa parte dos sindicatos se esvazia ou cria novos vícios que só fragmentam a luta e a reivindicação de direitos. A segmentação divisionista do mundo sindical acentua-se à medida que crescem os sindicatos-cogumelo, forças de truculência que representam facções em nome do mesmo suposto interesse. A degeneração não aparece apenas pela velhice que o tempo conta, mas também pelos novos sinais de irresponsabilidade que nada têm de ingenuidade ou de apelo juvenil. A “doença infantil do sindicalismo” veio para ficar e é um sinal precoce do fim.
Do combate político passou-se, agora, à instrumentalização. A forma como a luta dos polícias se deixa instrumentalizar pela extrema-direita não é de agora e até já está bem documentada. Muitas são as notícias que dão conta da ligação umbilical entre o ar que se respira e a aspiração que se atende. O convite de André Ventura para que os manifestantes irrompessem pelo Parlamento, somando vozes ao protesto que se preparava no exterior, é mais um acto de irresponsabilidade gratuita que em tudo prejudica a luta e a razão de ser dos protestos. Uma arma de arremesso contra as próprias forças policiais. A visão do gesto supremacista branco que Ventura usou na convocatória à acção avançada policial não é irrelevante. Os instrumentalistas não olham a meios para a destruição da ordem que tanto dizem querer proteger, são atiçadores de fogos postos eventuais dos quais apressadamente se encarregarão de afastar em caso de pleno incêndio.
Ao contrário de todas as outras forças partidárias, a extrema-direita portuguesa renovou a indiferença à audição da Procuradora-Geral da República, Lucília Gago, no Parlamento. Mais do que a preservação do Estado de Direito, ao Chega interessa a preservação dos instrumentos que possibilitem a manutenção da neblina de que tanto precisam para continuar a promover a mentira, a insídia e a demagogia. Agora que alguma comunicação social parece ter percebido, pela normalização do horror, que a loja dos horrores já não dá tantas audiências ou manchetes, a táctica da extrema-direita é evidente: radicalizar a luta na rua e instrumentalizar a ordem para prosseguir o caos.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia

