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Nunca vi rastro de cobra nem couro de lobisomem, se correr o bicho pega, se ficar o bicho come porque eu sou é homem porque eu sou é homem, menino, eu sou é homem, menino, eu sou é homem.
Quando eu estava pra nascer de vez em quando eu ouvia, eu ouvia a mãe dizer, ai meu deus, como eu queria que essa cabra fosse homem, cabra macho pra danar, ah mamãe, aqui estou eu, mamãe, aqui estou, eu sou homem com H.
A letra de “Homem com H”, tema que dá nome ao filme biográfico sobre Ney Matogrosso, é um exemplo de como a identidade do intérprete define o significado do que é cantado. Lida, poderia parecer uma ode à masculinidade normativa e viril, mas cantada por Ney, em toda a sua sensualidade languida e na sua voz de pássaro, torna-se um hino à subversão dos arquétipos de género. Sendo que, para cantá-la, daquela forma dançante e felina, bamboleante e sexy, por aquele homem andrógino e musculado, afeminado e peludo, enfeitado de plumas, provocante e dionisíaco, em plena ditadura militar, era preciso ser “muito homem” (como se costuma dizer na tradicional gíria sexista)!
O filme de Esmir Filho está na Netflix e merece ser visto. É protagonizado por Jesuíta Barbosa numa exímia prestação, que impressiona pela fidelidade ao inimitável astro da MPB. E, sendo um filme sobre a vida de um homem ainda vivo, não vale pelo grand finale, já que a inacabada narrativa termina num concerto recente, com todo o conforto do que ainda existe e é possível acompanhar. Vale antes pelo que revela de íntimo sobre a figura pública, desde a infância difícil e a relação conturbada com o pai militar com quem se reconcilia já no leito de morte, a um grande amor interrompido pelo vírus da SIDA e o seu papel como leal cuidador do companheiro doente, passando pela intensa vida sexual e pelos encontros com Cazuza.
É bonito celebrar Ney em vida, sobretudo porque ele é todo pulsão. A sua liberdade é tão absoluta que não precisa de se fazer bandeira, aliás porque, como diz o próprio: ele é a bandeira! A sua integridade artística à prova de censura e de mercado, de modas e de incompreensões, fez dele, por direito próprio, uma figura maior num panorama artístico e numa geração já recheados de ícones. E não é fácil ser da mesma geração de Caetano, Chico, Gal, Betânia e Gil e sobressair, sendo sempre alternativo, dentro das alternativas, sendo sempre discreto, dentro da sua exuberância. Mais difícil ainda, é não precisar de aval para ser o que se é, ainda para mais em tempo de ditadura, sendo filho de militar, bissexual e artista. Ney fez questão de não pedir licença e isso, até hoje, num tempo aparentemente mais livre, ainda é uma grande lição.