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Sempre que se impõe um flagelo político como o das eleições de domingo, circula uma ilustração em que um homem e uma mulher, de mãos nos bolsos, passeiam angustiados. O homem pergunta à mulher: “E agora, o que faremos?” Ela responde-lhe: “Poesia, esses canalhas não suportam poesia.” Aqui há três problemas. Um é a poesia, outro o suportar e por último os canalhas.
Vamos ao primeiro. Subentende-se que a resposta a esta direita extrema, demagógica e populista seja o tipo de lirismo cheio de boas intenções que canta o amanhã mas não resolve o hoje. O idealismo bem instalado que não alcança as periferias, as pessoas que não conseguem pagar casa, os que subsistem de um ordenado minimíssimo para os encargos ou de pensões miseráveis, os que esperam meses por consulta no SNS, os que não se sentem acudidos pelos partidos em quem costumavam votar.
Do fundo da angústia, ouviram uma voz que acharam ser de protesto e esperança: que pena, por tudo o que estamos fartos de saber, essa voz ser a de Ventura, um populista sonso que até na maior das vitórias se conseguiu vitimizar. Para os angustiados, a ideia de abanar o sistema foi a verdadeira poesia. E fizeram-na.
Outro problema é o suportar. Dizer que nós faremos poesia por oposição a eles, que não a suportam, põe-nos numa posição de superioridade moral intolerável. Nós dedicar-nos-emos à luz, enquanto vocês, os outros, se dedicam às trevas. E é um bocado ridículo, porque muitos políticos nocivos não só suportam a poesia como gostam dela. André Ventura até escreveu um romance em que um ciclista com sida chamado Luís Montenegro tem uma crise existencial. Trata-se certamente de poesia. Sobretudo, a própria mensagem que defende é poética: comigo, tudo mudará, comigo, viveremos em utopia.
Por último, o problema dos canalhas. Por mais detestável que possa ser, Ventura é um símbolo, um quase fenómeno religioso, na medida em que nele os votantes projectam a catarse e a mudança, o ressentimento, a ideia de pertença e o desencanto com os dois principais partidos. Tenho de relembrar a existência, por exemplo, de José Sócrates? A maioria dos votantes do Chega não são canalhas (eram-no quando votavam no PSD, no PS, no PCP ou no Bloco?), nem acham que, ao confiar num homem perfeitamente capaz de o ser, estão a cometer uma canalhice.
Claro que neste cesto também entra gente que não tem qualquer problema em promover discursos de ódio, desde a homofobia ao machismo. Basta passear pelos comentários das redes sociais para darmos com eles em abundância. Mas creio que sejam a minoria.
Ao ignorar isto, mais uma vez imitamos os EUA, metendo-nos numa espécie de guerra civil fria. Cada lado incapaz de comunicar, de compreender as intenções alheias, de separar a coisa de quem votou nela.
*O autor escreve segundo a antiga ortografia