"Todas as noites, ameaçavam-me", conta vítima de praxe na Força Aérea Portuguesa

Alguns dos arguidos na chegada ao Tribunal de São João Novo, no Porto
Foto: Amin Chaar / Arquivo
Um dos dois soldados da Força Aérea Portuguesa (FAP) que terão sido alvo de praxes violentas por parte de dez militares, entre 2018 e 2019, na Base Aérea N.º 5, em Monte Real (Leiria), afirmou esta terça-feira em tribunal que, nos 16 meses que ali passou, era ameaçado "todas as noites" e "chorava quase todos os dias".
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"Bateram-me duas vezes, uma delas foi à noite. Mandaram-nos deitar nas silvas e simular uma situação de guerra. Fiquei cheio de sangue na cara. Estava com o Alexander P. [o outro ofendido]. Eu não consegui fazer a prancha e ele [arguido Luís Oliveira] deu-me uma chapada no rosto", começou por dizer António G..
Na segunda sessão do julgamento, no Tribunal de São João Novo, no Porto, o ofendido contou que era obrigado a beber álcool pelos dez militares (cabos, cabos-adjuntos e soldados), que já foram expulsos da FAP, tendo dois deles ingressado na GNR e na PSP. "Se eu dissesse que não, era pior. A pessoa que é contra as praxes vira bicho", justificou-se, admitindo que "chorava quase todos os dias."
Questionado pela presidente do coletivo Maria Isabel Teixeira sobre a razão de não ter abandonado a FAP, o ofendido respondeu que não o fez para evitar pagar a indemnização exigida a militares que cessam contrato por sua iniciativa. "Era tarde para sair", lamentou, relatando que também era alvo de recorrentes ameaças. "Todas as noites, ameaçavam-me. O [arguido] Marco Pinto disse-me que, até ele sair [da Força Aérea], eu estava fodido", recordou, pedindo desculpa pelo uso do termo menos apropriado.
No seu depoimento, o ofendido, que se constituiu assistente no processo, também se queixou de que os arguidos - acusados por dois crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física e dois crimes de abuso de autoridade por outras ofensas - lhe ordenaram que comesse ração das gamelas dos cães e bebesse dos bebedouros existentes na Secção de Cinófila da base. Seria igualmente obrigado a fazer exercícios na pista de obstáculos dos cães.
António G. contou ainda que chegou a entrar para uma gaiola de transporte de cães, colocada numa viatura, fechado no interior de tal equipamento e assim transportado. Também teve de levar, nas mãos, dejetos de cães depositados de um preservativo, entre o edifício do Comando e o alojamento onde se encontravam.
O ofendido relatou também que, numa das ocasiões, o arguido Bruno Pereira apertou-lhe o pescoço, por o mesmo ter chegado atrasado ao posto.
No seu depoimento, António G. contou ainda que, durante a execução de um serviço de escala, o arguido André Alves ordenou-lhe que enrolasse ao pescoço uma corrente de fechar os portões da Porta de Armas da Base Aérea. "Colocou-me uma corrente no pescoço, como se fosse o cão dele", referiu, acrescentando que, de seguida, aquele arguido passou a controlar os seus movimentos.
"E porque é que não contou a ninguém", questionou a juíza. "Para não ser chibo. Estava lixado se contasse a alguém", respondeu.
A juíza Maria Isabel Teixeira abordou ainda uma tentativa de suicídio, através de intoxicação medicamentosa, em 2019, por António G.. Este preparava-se para responder, mas começou a chorar, levando a juíza a interromper a sessão para aquele sair da sala e se recompor. No retomar da sessão, a juíza não voltou a falar do tema.
Durante a sessão, o procurador que representa o Ministério Público, Paulo Namora, quis "avivar" o ofendido com as declarações que este prestara, anteriormente, à Polícia Judiciária Militar, responsável pela condução da investigação, mas os advogados opuseram-se e o pedido acabou indeferido pelo coletivo de juízas.
Três arguidos já falaram
Na primeira sessão do julgamento, apenas dois dos dez acusados - Cristiano Silva e Luís Oliveira - quiseram prestar declarações ao coletivo. Esta terça-feira, um terceiro arguido, André Alves, quis também falar, para negar o que está descrito na acusação.
"São totalmente falsas [as acusações]. Não tive participação", disse, rejeitando ter havido uma "combinação" para integrar os dois soldados que, segundo o Ministério Público, os arguidos consideravam ter um nível de desempenho "abaixo do padrão" e, como tal, deviam ser sujeitos a um "processo de integração/ensinamento".
André Alves negou ainda ter apontado uma arma de fogo à cabeça do ofendido. "Não é verdade. Jamais. Isso era logo um crime", disse, negando igualmente ter posto uma corrente ao pescoço do ofendido.
Para a próxima sessão, agendada para abril, está prevista a audição do segundo ofendido.

