A relação entre a família e a escola é sempre uma construção de balanço e equilíbrio. Se há algo que não pode ser posto em causa é o princípio de que nenhuma delas se substitui à outra, confundindo espaços e devolvendo papéis entre si, como quem joga à distância da rede à espera de um toque que marque falta. A entronização da família como fonte de saber único, todo-poderoso, é a máquina de manutenção dos privilégios parentais como ciência viva. E a notícia de actualidade para nós, pais, é que os manuais escolares não foram feitos pelos nossos avós e ainda bem. Tomarmos a nossa família como padrão é replicar na escola um juízo sobre nós mesmos, nossa conduta e princípios, o que não pode ser tolerável nem admissível numa sociedade livre, plural e inclusiva. Daí a noção da cidadania, um apelo à pluralidade e a outros cosmos, universos que fazem disciplina.
Revisão da cidadania dada. Eleger a revisão da matéria dada na disciplina de Cidadania como uma prioridade governativa, num momento e contexto em que se procura conter a polarização e desocupar trincheiras, é alinhar com o programa, a retórica e os objectivos da extrema-direita, fazendo entrar o discurso pela porta da demagogia. Ninguém o pode esconder e ninguém o desconhece. É mais do que um frete, é uma tentativa funcional de piscar o olho a uma parte do eleitorado que se radicalizou numa lógica de incomodidade com a diferença, procurando estereotipias disfuncionais na diversidade. É colocar a ciência numa balança, como se os factos fossem ideologia, como se residisse nas aulas de Cidadania o bicho-papão que subtrai as crianças à boa conduta. A violência doméstica, como o próprio nome indica, vive-se em casa e talvez essa fosse a grande prioridade.
O debate sobre a imigração, a igualdade, a saúde, a justiça e a escola são temas em que as soluções não podem ser partilhadas por forças opostas com uma bandeira na mesma mão. As aproximações da Direita democrática aos tiques “penso rápido” da demagogia são piores do que as próprias soluções na medida em que permitem a normalização dos horrores que chegam a seguir. É evidente que os programas escolares podem e devem ser objecto de crítica, revisão e novas resoluções. É óbvio que nem tudo estará perfeito. Mas levantar a bandeira das aulas de Cidadania como um dos focos fundamentais de mudança é alimentar a ideia de há um monstro ideológico que cresce visível nas salas de aula, quando o fundamento do que se ensina é respeito e civilização. O monstro pode vir mesmo na mochila. As famílias que funcionam como porta-propriedade e moldura das crianças são, elas mesmas, a doença que a escola combate quando as ensina a crescer com liberdade.

