Há funcionários judiciais que sofrem eticamente quando os tribunais se tornam em "focos de injustiça" e as tarefas que executam diariamente "não só não produzem justiça, como geram até injustiça".
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A conclusão consta do relatório analítico do "Inquérito Nacional às Condições de Vida e de Trabalho dos Funcionários Judiciais em Portugal", elaborado pelo Observatório para as Condições de Vida e de Trabalho e apresentado esta terça-feira, em Lisboa.
"Esta contradição é extremamente grave do ponto de vista psíquico, pois coloca potencialmente os funcionários judiciais numa situação de conflito: entre a sua vocação ou o seu ideal profissional (as razões pelas quais aderiram a esta profissão e aquilo que aspiram enquanto profissionais) e a realidade dos seus atos de trabalho, que, segundo o que ouvimos, chegam a minar esse ideal", lê-se no estudo, a que o JN teve acesso.
Entre as situações usadas como exemplo, estão casos em que os oficiais de justiça "dão a cara" e têm de explicar aos pais de um alguém assassinado porque é que o agressor saiu em liberdade ou a um casal o porquê de ter "de ir viver para o meio da rua' porque a 'justiça' determinou que teriam de abandonar aquele que era o seu lar".
"Tive de retirar um filho a uma mãe e entregá-lo ao pai. Senti-me muito mal nesse dia e não concordei nada com a situação", relatou, por sua vez, um dos funcionários judiciais ouvidos pelos investigadores.
"Densas cargas emocionais"
Os casos que envolvem crianças são, de resto, apontados no estudo como aqueles em que "tendencialmente" existem "densas cargas emocionais". "Há, inclusive, relatos de funcionários judiciais que afirmam visitar crianças em instituições de acolhimento e levá-las a passar o fim de semana na sua própria casa", salientam os autores do relatório.
Alguns testemunhos em casos sensíveis, processos de violência doméstica, "as tentativas de fugas nos tribunais, as respetivas detenções com recurso a violência, cenas de pancadaria" e "as pessoas a serem algemadas", bem como ocasiões de "violência verbal" e de risco para a sua integridade física, são outras das situações pelas quais os oficiais de justiça se dizem "bastante afetados".
"Seria importante que os funcionários judiciais recebessem formação adequada para desenvolverem capacidades de gestão emocional, de modo a estarem mais aptos a enfrentar essas situações e desempenhar o seu trabalho de forma imparcial", recomendam os investigadores.
80% em esgotamento
O estudo, encomendado pelo Sindicato dos Funcionários Judiciais e destinado a entender "as relações existentes entre as condições e a organização do trabalho dos funcionários judiciais e o seu estado de saúde", mostra ainda que 80% dos 2029 inquiridos entre 11 de setembro e 21 de novembro de 2022 "apresentam níveis elevados de esgotamento".
"São níveis superiores aos de todas as classes profissionais estudadas por nós, incluindo professores, jornalistas, pessoal de voo, técnicos de manutenção aérea, estivadores, entre outros", salienta o Observatório, que fala numa profissão que com "fracas recompensas", apesar do seu "papel fundamental na administração da Justiça".
"As remunerações são baixas e, na sua maioria, os funcionários judiciais queixam-se de salários baixos e remunerações insuficientes que não lhes permitem ter uma vida digna. Apenas 2% não se sentem afetados por esta questão, enquanto 98% sentem que têm uma má compensação salarial", justificam os autores do estudo.
A sobrecarga de trabalho - cerca de um quinto dos inquiridos trabalha mais de 40 horas por semana - e a falta de reconhecimento "pelas tutelas e chefias" são outras das fontes de desgate e "de sofrimento no trabalho" dos oficiais de justiça.
Do gelo aos 40.ºC
A saúde dos funcionários ressente-se, adicionalmente, com as condições de trabalho nas instalações dos tribunais e do Ministério Público.
Entre os problemais mais comuns, está a existência de "fotocopiadoras/multifunções" quase em cima dos funcionários", o que deixa os profissionais sujeitos ao ruído das máquinas e a "pó e partículas impróprios para a saúde", de mobiliário "com ergonomia desadequada, muito dele obsoleto e muitas vezes partido", e de "salas de audiência, secretarias e gabinetes onde se gela no inverno e onde se chega aos 40.ºC no verão".
Edifícios onde não é possível abrir as janelas e tribunais instalados em contentores, centros comerciais ou em blocos de apartamentos são outras das questões apontadas.
"Um saco de boxe"?
Bem menos consensual é a caracterização do relacionamento entre os oficiais de justiça e os magistrados. Embora alguns dos funcionários judiciais ouvidos pelos investigadores tenham feito questão de deixar "bem vincada" a ideia de que "existe um bom relacionamento", outros disseram sentir-se um "número significativo de vezes" como "um saco de boxe de má disposição dos magistrados".
"As queixas relativamente aos abusos de poder de magistrados são diversas, e parece grassar entre os participantes o sentimento de que os magistrados gozam de uma impunidade e de privilégios que lhes são negados", resumem os autores do estudo, apontando uma lógica "de 'retaliações' mútuas" no andamento dos processos, que "pode ser interpretado como um substituto de um diálogo entre profissionais (regra geral inexistente)".
"Este aspeto estará também, seguramente, relacionado com questões de lealdade, por um lado, e sobrecarga, por outro", rematam.