Corpo do artigo
Há quem diga que o dia de reflexão está desatualizado e não serve para nada. Discordo. O dia de reflexão é dos poucos dias em que nem partidos nem deputados fazem publicações. É uma espécie de dia sem carros nas redes sociais, na medida em que a poluição diminui consideravelmente. Eu por acaso aproveitei o dia de reflexão para refletir. Esta campanha eleitoral foi politicamente estéril. E olhem que eu, por motivos profissionais, acompanhei diariamente as campanhas de todos os partidos. Foi-se ao banho. Jogou-se vólei. Andou-se de mota. Visitaram-se fábricas com toucas na cabeça. Passou-se imenso tempo em mercados e beijaram-se tantas feirantes e peixeiras, que grande parte do investimento dos partidos deve ter sido em batons Labello. Para além disto, os cabeças de lista cantaram e dançaram tanto, que mais parece que hoje o nosso trabalho é votar não para eleger o próximo Governo de Portugal, mas votar para que passem à próxima fase do concurso de talentos. Para além disto, estas duas semanas foram marcadas pela campanha do Chega e o grande evento foi tão interno ao partido, que só faltava termos visto uma endoscopia em direto. A própria cobertura jornalística foi de tal maneira monotemática e sensacionalista, que dei por mim a pensar se o meu comando estava bloqueado na CMTV.
O partido de extrema-direita fez do tema da campanha "andam a roubar há 50 anos" apontando o dedo a quem governou, nomeadamente PS e PSD, sendo que, e aqui é que reside o facto curioso, o líder do Chega só saiu do partido que é o rosto da corrupção em 2018. Ora, se calhar, nos anos todos em que lá esteve, não reparou. O que é mau sinal para alguém que se diz preparado para governar um país. Provavelmente, também os seus colegas que eram do PSD, como o Rui Cristina, a Lina Lopes, o Henrique de Freitas, Manuela Tender, Eduardo Teixeira, só perceberam que, aparentemente, o PSD é um antro de maldade quando ficaram em lugares não elegíveis no partido fosse para o que fosse. São estas coincidências.
Pela primeira vez, mais do que o primeiro lugar, estou mais interessada no resto do pódio. Não sei o que é que vai acontecer mais logo, mas se revelar que o país guinou de tal forma para a extrema-direta, temo que não tenhamos um kit de emergência preparado para essa tragédia. Atenção, é possível que esteja a ser condicionada pelo algoritmo que passa o dia a mostrar-me jovens que vestem a t-shirt do Chega como quem usa merchandising da banda do momento e senhoras que ontem postavam a sua receita de carne de porco à alentejana e que hoje fazem correntes de oração a São Jorge, tudo para mostrar apoio a um líder político que teve problemas com o seu pH do estômago. É indesmentível que os eleitores de extrema-direita começam a perder a vergonha de apoiar um partido que tem deputados que se referem a imigrantes como ratos e "lixo humano" e vai valer a pena investirmos as próximas semanas a tentar descobrir as razões que levam as pessoas a votar em partidos para não se chegar a uma conclusão com uma solução eficaz.
Sei que a pobreza das campanhas políticas, a iliteracia cívica e política, os algoritmos e as coberturas jornalísticas contribuem, mas analisar isto é um pesadelo. Os mesmos fanáticos que dizem que os imigrantes muçulmanos em Portugal representam um problema porque tratam indignamente as mulheres são os primeiros a encher caixas de comentários de mulheres que se assumem de esquerda com "ó porca, faz-me uma sandes". Eu até consigo mais ou menos perceber as pessoas a quem o Estado continua a falhar e se sentem permanentemente injustiçadas e encontram na retórica deste partido uma forma de protesto, mas pessoas com estatuto socioeconómico elevado que fazem campanha por isto estão zangadas com o quê? O que é que lhes falta exatamente? Mulheres que ainda hoje são vítimas de um sistema patriarcal e cuja criminalidade que mais aumentou é exatamente a que as mata, o que é que esperam? Se a liberdade é a possibilidade de cada um se realizar como quiser, como é que se vota em quem procura ativamente acabar com ela? Como é que se entende quem quer dar força a um partido vazio que não tem ideias concretas e vive da produção e promoção de mentiras para melhorar a vida do país? Como é que se lida com esta onda? É suster a respiração e deixar que passe? Porque é realmente difícil perceber o que é que leva cidadãos como, por exemplo, ex-combatentes, malta que esteve na Guiné, a pensar "eu quero mesmo votar neste tipo que teve dois fanicos e meio por causa do refluxo".