Sócrates acusado de receber dinheiro do amigo quando ainda era primeiro-ministro
Ex-governante começa esta quinta-feira a responder sobre propriedade de 34 milhões de euros na Suíça em nome de Carlos Santos Silva.
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“Ninguém gasta milhões que não lhe pertençam”. A afirmação é dos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa que mandaram o ex-primeiro-ministro, José Sócrates, o seu amigo e empresário Carlos Santos Silva e outros 20 arguidos ser julgados por corrupção, branqueamento de capitais e fraude fiscal. Ao todo, o empresário terá feito chegar cerca de oito milhões de euros, entre 2010 e 2014, à esfera de Sócrates, que declarou à Justiça terem sido empréstimos cedidos a um “pobre provinciano que andou na política durante uns anos” pelo amigo de infância, um homem “de posses”. No julgamento que arranca hoje no Tribunal de Lisboa, Sócrates vai ser confrontado com os indícios reunidos pela investigação da Operação Marquês, que detetou três remessas de dinheiro que lhe foram entregues quando ainda liderava o Governo.
Dez anos e sete meses após a sua detenção, Sócrates vai sentar-se no banco dos réus por 22 crimes: três de corrupção, 13 de branqueamento de capitais e seis de fraude fiscal. Segundo a acusação do Ministério Público (MP), validada, na sua maioria, pela Relação de Lisboa, que reverteu a decisão do juiz de instrução Ivo Rosa (ver cronologia), a fortuna atribuída a Sócrates teve origem em três pactos corruptivos. Um firmado com o Grupo Lena, outro com o extinto Banco Espírito Santo (BES) e, por último, com os sócios do empreendimento Vale do Lobo.
Obras e Portugal Telecom
Enquanto primeiro-ministro, Sócrates terá usado a sua capacidade de influência para favorecer os negócios do Grupo Lena no concurso da obra do troço Poceirão-Caia do projeto do TGV, que acabou por não sair do papel, além de ajudar na internacionalização da construtora, com empreitadas milionárias na Venezuela. De Ricardo Salgado, ex-presidente do BES, suspeita-se que Sócrates tenha recebido a maior fatia das luvas. O antigo governante terá favorecido os interesses do banco, nas estratégias adotadas pela antiga PT, cuja estrutura acionista se dividia entre o Estado e o BES.
Sobre o resort Vale do Lobo, no Algarve, Sócrates é acusado de ter movido influência para que os sócios do empreendimento tivessem acesso a um crédito, ruinoso para o banco público, então administrado por Armando Vara. Este antigo ministro e Sócrates terão recebido, cada um, um milhão de euros. Do lado do antigo primeiro-ministro, tal como as outras alegadas luvas, o dinheiro da corrupção terá ido parar à conta suíça de Santos Silva. Acusado de ser testa de ferro de Sócrates, o amigo de infância repatriou, entre 2010 e 2011, cerca de 23 milhões de euros da Suíça para Portugal ao abrigo dos regimes excecionais de regularização tributária.
Com a fortuna numa conta portuguesa, começaram os levantamentos em numerário e entregas de dinheiro a Sócrates, que usaria a ex-mulher, Sofia Fava, ou o motorista, João Perna, entre outros, para lhe fazer chegar as notas.
“Enquanto o arguido José Sócrates exerceu funções de primeiro-ministro, o estratagema de realizar levantamentos e entregas de numerário apenas foi concretizado por três vezes, dado que, atentas as funções públicas desenvolvidas, ambos os arguidos, José Sócrates e Carlos Santos Silva, sabiam que existia um particular escrutínio sobre a sua vida pública, bem como sobre as suas contas pessoais, pelo que as entregas só ocorreram em situações muito pontuais”, escreveram as juízas da Relação, que particularizam duas entregas de dinheiro, em dezembro de 2010 e janeiro do ano seguinte, no total de 7500 euros.
Dinheiro vivo
Após a demissão de Sócrates, em maio de 2011, “as entregas de numerário ao mesmo arguido começaram a ter uma maior cadência e regularidade, em função da necessidade de procurar salvaguardar a liquidez da sua conta bancária”. É que Sócrates gastava muito dinheiro. Além dos mais de dois milhões de euros para pagar o apartamento de Paris, e respetivas obras, o ex-primeiro-ministro terá, em cerca de três anos, gastado mais de um milhão de euros, em dinheiro vivo, com despesas correntes, como viagens, roupas, refeições ou férias.
A acusação garante que, direta ou indiretamente, Santos Silva entregou a Sócrates oito milhões de euros. Porém, ao todo, enquanto primeiro-ministro, Sócrates terá amealhado cerca de 34 milhões de euros, que terá escondido na conta titulada pelo amigo Carlos Santos Silva na Suíça. “Temos como certo que o valor (arredondado) de 34 milhões de euros pertencia ao arguido Sócrates”, concluiu o coletivo da Relação de Lisboa, que analisou o chamado “caminho do dinheiro” para afirmar que o beneficiário dos milhões era Sócrates.
Santos Silva comprou casas à mãe do político
A acusação garante que José Sócrates e Carlos Santos Silva arranjaram outra forma de fazer chegar o dinheiro das luvas ao ex-primeiro-ministro, que passava pela compra e venda de imóveis, que estavam em nome da mãe do antigo governante. Entre junho de 2011 e setembro de 2012, Carlos Santos Silva e Maria Adelaide Monteiro, mãe de Sócrates, celebraram três escrituras públicas de compra e venda de imóveis situados no Cacém, em Sintra e em Lisboa, neste caso no prédio Héron Castilho, na Rua Braamcamp. Ao todo, os imóveis tinham um valor de 775 mil euros. Desse valor, “creditado nas contas de Maria Adelaide Monteiro a título de pagamento de sinais e dos preços escriturados, mais de 70% − concretamente 555 mil euros − foram transferidos para a conta pessoal do arguido José Sócrates”, garante a acusação, que reporta transferências efetuadas pela mãe ao filho.