Chefe da Casa Civil diz ter omitido ao Governo que pedido sobre gémeas era do filho de Marcelo
O chefe da Casa Civil, Frutuoso de Melo, assegurou esta terça-feira que "não houve qualquer tratamento de favor por parte da Presidência da República” no caso das gémeas luso-brasileiras. Disse que omitiu "deliberadamente" ao Governo que o pedido era de Nuno Rebelo de Sousa para evitar "pressão" e não falou com Temido.
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A comissão de inquérito ao caso das gémeas luso-brasileiras tratadas com o medicamento Zolgensma recebeu esta tarde o chefe da Casa Civil da Presidência da República para prestar esclarecimentos sobre a sua intervenção no caso. Esta audição foi aprovada no início de junho.
Após agradecer a oportunidade para "testemunhar e esclarecer qualquer dúvida sobre toda a correspondência", Fernando Frutuoso de Melo recordou outro caso, da bebé Matilde, que em junho de 2019 "comoveu o país".
"Os portugueses mobilizaram-se e angariaram mais de dois milhões de euros" para o medicamento, que só estava disponível nos EUA. Lembrou ainda que o deputado Moisés Ferreira, do BE, chamou a atenção para o caso e permitiu que o SNS também administrasse o medicamento. "Tal permitiu tratar em Portugal outras crianças, incluindo estas duas", destacou.
Admite "desconforto" por pedido a Belém
Em seguida, traçou a cronologia do caso das gémeas luso-brasileiras desde 21 de outubro de 2019, "três meses depois das notícias sobre a bebé Matilde". Foi quando Nuno Rebelo de Sousa enviou um email ao pai, o presidente da República, sobre as gémeas. "Perguntou como podia ajudar as duas crianças", que "tinham também nacionalidade portuguesa", e se podiam “ter acesso" ao medicamento em Portugal, recordou Frutuoso de Melo, que admitiu o "desconforto" por o filho do presidente ter recorrido a Belém.
O chefe da Casa Civil garantiu depois que omitiu "deliberadamente" ao Governo que o pedido era de Nuno Rebelo de Sousa para evitar "pressão", ocultando o remetente do email (dirigido pelo filho do presidente a Marcelo) ao reencaminhar o assunto.
"Decidi deliberadamente omitir a identificação de quem tinha feito chegar tal solicitação", afirmou aos deputados, explicando que transcreveu o email sem dar conhecimento ao Governo da origem do pedido para que não fosse recebido como "qualquer forma de pressão".
"Preso por ter cão e por não ter"
Sobre esta matéria, acrescentou mais à frente na audição que, quando reencaminhou o caso para o Governo, era de "regular bom senso" omitir a origem do pedido para as pessoas não se sentirem "influenciadas". "Sinto-me numa situação de preso por ter cão e preso por não ter", comentou, insistindo que fez "o que tinha a fazer, o mais correto".
"Não houve nenhum contacto da minha parte com nenhuma entidade governamental, nem com o Ministério da Saúde nem com hospital nenhum, com ninguém sobre este caso. O ofício foi enviado ao gabinete do primeiro-ministro, nas condições que conhecem, pelo que sabemos foi enviado pelo gabinete do primeiro-ministro ao Ministério da Saúde" e depois "foi tratado no interior do Ministério", disse mais à frente na audição, garantindo ainda não saber a razão pela qual Marcelo, segundo alegou o presidente, cortou relações com o filho. "Só me lembro do ditado popular: quem tem filhos tem cadilhos", comentou.
Frutuoso de Melo referiu ainda que, desde março de 2016, a Presidência já recebeu à volta de 190 mil solicitações, 80 por dia de trabalho. E contou que havia cerca de 40 mil pedidos diretos com questões da área da saúde.
Ainda sobre a cronologia do caso, lembrou que Marcelo lhe remeteu o primeiro email do filho, em que perguntava se a assessora Maria João Ruela poderia perceber a situação. A assessora pediu mais detalhes e Nuno Rebelo de Sousa disse que as crianças se encontravam em São Paulo, acrescentou. No dia seguinte, Frutuoso de Melo diz ter informado Marcelo de que os pais das gémeas queriam que fossem tratadas em Portugal com o "medicamento da Matilde".
Entre outra correspondência trocada depois com o filho de Marcelo, referiu um contacto de 29 de outubro, em que Nuno Rebelo de Sousa lhe perguntou se poderia contactar os pais das bebés, tendo respondido que a prioridade seria para quem resida ou esteja em Portugal. E que, por isso, não seria "previsível" que os pais fossem contactados rapidamente. A 31 de outubro, o caso foi remetido, pela "forma habitual", ao Governo.
Houve outros pedidos de Nuno Rebelo de Sousa
Frutuoso de Melo confirmou depois que Belém contactou o hospital, mas o de Dona Estefânia, em Lisboa. E garantiu que esse contacto não foi "de maneira nenhuma" para marcar consulta. "O objetivo, como acontece muitas vezes, é saber o que se passa e como é que isto é tratado", justificou.
"Não acontece em todos os casos, mas é perfeitamente habitual", respondeu, quando questionado sobre se era normal a Presidência da República contactar as instituições devido a casos concretos.
Já instado sobre se o caso das gémeas foi o único pedido de Nuno Rebelo de Sousa a Belém, deixou a dúvida no ar. "Não posso jurar, mas foi certamente o mais relevante", respondeu. Mais adiante na audição, já admitiu que houve. E recordou o que Marcelo lhe disse sempre, que "filho de presidente não era presidente".
"Para mim era sempre desconfortável. Não foi a primeira vez que aconteceu. Todas as vezes que alguma coisa vinha daí, a primeira coisa que me vinha à memória era isso", disse na comissão de inquérito.
No caso das gémeas, o chefe da Casa Civil nota que "o doutor Nuno Rebelo de Sousa não teve a resposta que esperava". Neste caso, justificou o facto de ter respondido ao filho de Marcelo dizendo que a lei obriga a informar o remetente sobre o destino dado ao seu pedido.
A intervenção do ex-conselheiro Mário Pinto
Na audição, assegurou ainda que nunca deu instruções a Mário Pinto, consultor com quem Lacerda Sales terá tido vários contactos. Referiu que não foi Mário Pinto a tratar do caso que, por serem crianças não residentes em Portugal, foi passado para Maria João Ruela, assessora para os assuntos sociais, enquanto aquele ex-consultor continuou a tratar das questões ligadas à Saúde.
Questionado sobre se aquele conselheiro de Belém para as questões de saúde (até 2021) tinha autonomia para ter reuniões com o Governo, Frutuoso de Melo respondeu que não tinha conhecimento de que Mário Pinto tivesse reuniões sistemáticas com membros do Executivo.
"Se soubesse o que sei hoje teria respondido outra coisa"
Já instado sobre os contactos de Marcelo com o médico Levy Gomes, coordenador da unidade de Neuropediatria do Hospital de Santa Maria, respondeu que tinha tido conhecimento, mas que aquele contacto não tinha passado por si.
"Se eu soubesse o que sei hoje, teria respondido outra coisa e teria dito: se querem resolver o vosso problema, apresentem-se na urgência”, admitiu ainda. Mas "acho que Nuno Rebelo de Sousa não teve a ajuda maior do presidente da República", referiu.
Mensagens entre Frutuoso de Melo e filho de Marcelo
Num comunicado divulgado no dia 7 de junho, dando conta de que iria remeter ao Parlamento a documentação já enviada à Procuradoria-Geral da República, Marcelo Rebelo de Sousa escreveu que "os dois únicos elementos da Casa Civil que intervieram no caso em apreço, entre 21 de 31 de outubro de 2019, data em que o processo foi transmitido, nos termos habituais, ao gabinete do primeiro-ministro, foram o chefe da Casa Civil e a assessora para os assuntos sociais", Maria João Ruela.
Segundo já foi noticiado, a 29 de outubro de 2019, o filho de Marcelo enviou a Fernando Frutuoso de Melo, por email, o número de telefone e o endereço eletrónico de Daniela Martins e do marido, pais das gémeas. Nessa mensagem, Nuno Rebelo de Sousa referiu o seguinte: "Segue um assunto que o meu pai passou à dra. Maria João Ruela, mas até hoje nada evoluiu e ninguém falou com os pais das crianças. Segue um vídeo para perceberem o real estado das crianças de 10 meses que estão internadas 24 horas com os movimentos a piorarem dia após dia.".
"Nunca falei" com Marta Temido sobre o caso
Dois dias depois, Frutuoso de Melo respondeu "Nuno, depois de termos contactado o hospital, achámos adequado envolver o Governo, pois a gestão das listas de espera é da responsabilidade do Ministério da Saúde."
Confrontado com esta última resposta, o chefe da Casa Civil diz ter transmitido a percepção que tinha quando se referiu à existência de listas de espera neste caso, dizendo agora que se "enganou". "Não era verdade", referiu, após recordar que Maria João Ruela perguntou ao hospital como eram tratados estes casos. Frutuoso de Melo respondeu ainda à comissão que não falou com Marta Temido, então ministra da Saúde. "Nunca falei", assegurou.
Frutuoso de Melo garantiu ainda que, na altura deste processo, falou com o presidente pela última vez para lhe dizer que o caso foi passado ao Governo. Na audição, disse ainda que "muitos milhares" têm o email pessoal de Marcelo Rebelo de Sousa, garantindo que têm o mesmo tratamento do que as mensagens que chegam pelo formulário online.
Da sua parte, o chefe de Estado já remeteu para a próxima semana a sua decisão em resposta ao pedido para depor na comissão de inquérito sobre o caso das gémeas com atrofia muscular espinhal tratadas no Hospital de Santa Maria. "Para a semana depois eu direi qual é a minha posição sobre a carta", declarou esta terça-feira em Lisboa.