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Que o neofascismo é o papagaio de pirata do neoliberalismo já sabíamos, mas fica ainda mais claro, quando senhores de fato e gravata, com responsabilidades e tempo de antena, ligados ao partido do poder, fazem corresponder a violência neonazi ao bicho-papão da extrema-esquerda. A ameaça inexistente da “perigosa esquerda” que só é assustadora para eles, serve apenas para o whataboutism irresponsável dos que andam a encobrir o crescimento da violência racista no espaço público, legitimada pela normalização do discurso de ódio nas instituições políticas. É como a lógica dos que demonizam o “feminismo radical” quando é o machismo que mata (e muito) em Portugal e, até à data, nenhum ser humano, animal ou amigo imaginário ficou ferido por causa de feministas furiosas. É mesmo só a direita sonsa a proteger os neonazis neste nosso jardinzinho de brandura...
Enquanto isso, fomos para a rua, reagir contra as agressões a atores, a voluntárias, a pessoas comuns, vítimas da bestialidade e do ódio, daqueles que andam entretidos a culpar os imigrantes por problemas intrínsecos a um sistema canibal. Aqueles que servem de minions de André Ventura, que por cá defende o que Donald Trump já cumpre: a lógica do dividir-para-reinar, não vá o povo unido apontar o dedo aos vampiros que lhes sugam a jugular.
A grande massa vota nos populistas e nos liberais, idolatra e bajula bilionários psicopatas, alimenta-se de conteúdos que promovem uma masculinidade ambiciosa e competitiva, que quer esmagar as mulheres e todos os que (tal como elas) estão no domínio da fraqueza e da vulnerabilidade. A grande massa está carente de gurus e tenta resolver o vazio existencial com teorias de autoajuda que individualizam o sucesso e o insucesso, esvaziando a dimensão comunitária da vida (quer do lado da construção de prosperidade com vista ao bem comum, quer do lado do desamparo, na responsabilização total do indivíduo pelas suas circunstâncias). E neste caldo cultural, reina o cada um por si, a lei do mais forte, em que o Estado é para destruir, os fracos são para dominar e o macho-alfa- wannabe-de-Musk tenta cumprir o sonho americano, achando que vai ser bilionário, quando é infinitamente mais provável que, num futuro próximo, venha a ser um refugiado do clima, ainda mais miserável que os imigrantes que hoje despreza.
Em síntese, nem a paisagem é bonita, nem o futuro parece risonho e, mesmo continuando na luta, sinto um grande desânimo e uma vontade de fingir demência e entrar numa espécie de “Adeus Lenine”. Ao mesmo tempo, acho que perante tudo o que vivemos, sobretudo na Palestina, não é hora de nos darmos esse privilégio, mesmo que o ruído seja insuportável e que ser testemunha da idade das trevas, ou do holocausto, na era das redes sociais, seja demasiada realidade aumentada para o nosso cérebro de homo sapiens, feito para comer bagas numa caverna. É mesmo tudo, em todo o lado, ao mesmo tempo, em atualização permanente, em todos os prismas (pela perspetiva informativa, histórica, emocional, biográfica), em todos os meios audiovisuais, vinte e quatro horas por dia. E sendo absolutamente esmagador, acho mesmo que estamos num momento histórico em que não tomar uma posição já não é aceitável, mesmo que apeteça muito ceder ao alheamento.
É preciso garantir que engrossamos as hostes da Humanidade, que estamos do lado certo da História, que somos a pequena pedra que trava a engrenagem voraz dos genocidas, dos neonazis, dos autocratas e dos cúmplices (no seu cinismo ostensivo ou na sua sonsice cobarde). O silêncio, neste momento, só vai alimentar a grande besta.