Ivo Lucas, namorado de Sara Carreira, que morreu num acidente de viação, em 2020, garante que viu apenas um “vulto”, antes de embater no carro da fadista Cristina Branco, imobilizado na faixa central da A1, após ter chocado com outro automóvel. O julgamento começou esta terça-feira e todos os arguidos falaram.
Corpo do artigo
Pronunciado pelo crime de homicídio por negligência, o ator Ivo Lucas relatou, emocionado, que, momentos antes do acidente, o casal de namorados estava a trocar palavras de amor, quando Sara gritou “cuidado”. “Deparo-me com um vulto, e não me lembro de mais nada”, assegurou. “Tenho a sensação de, numa fração de segundos, sentir o meu corpo dentro do carro e, a seguir, a única memória que tenho é estar no meio da autoestrada, de braço partido e de tronco nu, sem saber da Sara.”
“Lembro-me de olhar para o meu braço, ver que estava desfigurado, e não perceber o que se estava a passar”, recordou o ator. “Começo a ouvir uma voz a chamar-me, a pedir para ir para o pé dela. Sentei-me no carro dela, que estava na berma”, contou. “Lembro-me de ter visto o meu melhor amigo, que morreu ali perto. E começo a perguntar pela Sara. Vem um senhor ter connosco e pede para ter calma.”
Confrontado com o facto de circular em excesso de velocidade, Ivo Lucas disse não se recordar, nem sequer em que via de rodagem viajavam. “Não íamos com pressa de chegar”, observou, pois Sara tinha avisado o casal de amigos, com quem iam passar o fim de semana, em Salvaterra de Magos, que se iam atrasar. O arguido também disse não se recordar porque embateu contra o veículo de Cristina Branco. “Foi tudo muito rápido e as minhas memórias são flaches”, justificou.
Apesar disso, o arguido lembrou-se de sentir “muita pressão no corpo”, que comparou a uma “montanha-russa”, apesar de tanto ele como Sara terem o cinto de segurança colocado. Questionado por Magalhães e Silva, advogado de Tony Carreira e da ex-mulher, sobre o que o pretendia dizer com “um vulto”, respondeu que se apercebeu de um “objeto significativo” à sua frente, mas garantiu que, antes disso, não viu nada.
Alcoolizado, mas consciente
O primeiro arguido a ser interrogado pela juíza Marisa Ginja foi Paulo Neves, que também responde por homicídio por negligência. Circulava alcoolizado a cerca de 30 quilómetros por hora na A1, sem sinalizar a “marcha lenta”. Gerente de uma empresa, o arguido confirmou que tinha estado a lanchar com dois amigos, durante cerca de 45 minutos, e que ingeriram vinho e queijo, mas não soube precisar a quantidade de álcool que consumiu. “Conscientemente, pensava que estava bem.”
Convicto de que não conduzia a uma velocidade tão reduzida, até porque o carro “não aguentava”, Paulo Neves disse que devia estar a circular entre 70 e 80 quilómetros por hora, porque estava escuro, havia “mantos de nevoeiro e chuva miudinha”. “Senti um embate atrás, mesmo ao centro”, relatou, em alusão ao veículo da fadista Cristina Branco. “Parti o banco, fiquei deitado dentro do carro e não conseguia ver a estrada”, assegurou. Como se sentia “combalido”, disse que permaneceu no carro “cinco minutos”.
Paulo Neves explicou que não sinalizou a “marcha lenta” por “descuido” e que não colocou o triângulo na estrada, para sinalizar o acidente, com o facto de “a mala ficou metida para dentro”. Quanto ao teste de alcoolemia, confirmou que pediu à GNR para ir fazer análises ao sangue ao hospital, porque achava que o valor apurado não estava correto, o que sucedeu quatro horas depois. Foi-lhe detetada uma taxa de alcoolemia de 1,18 g/l.
“Não se apercebeu que estava alcoolizado?”, perguntou uma advogada. “Estava plenamente consciente do que estava a acontecer e a fazer”, respondeu Paulo Neves. “Não acredita nas perícias e nos relatórios médicos?”, insistiu. “Em relação à velocidade, tenho muitas dúvidas. Quanto ao álcool, tenho de aceitar”, distinguiu.
Fadista viu carro a sobrevoar
Quando percebeu que o carro de Paulo Neves estava a circular abaixo da velocidade permitida por lei nas autoestradas, a fadista Cristina Branco contou que pôs a mão no peito da filha, de 11 anos, que seguia ao seu lado, e avisou-a que iam bater. “Tentei desviar-me, pelo que bati mais sob o lado esquerdo, e os airbags deflagraram”, recordou a arguida, que responde igualmente por homicídio negligente.
“Senti que estava a bater numa parede”, acrescentou a cantora. O automóvel acabou por ficar parado na faixa do meio, virado ao contrário, sem que se tenha apercebido, pelo que ligou os quatro piscas e levou a filha para o separador central, convencida de que estavam na berma.
Cristina Branco explicou que se sentaram no separador central de betão, com uma perna de cada lado, enquanto falava com um operador do 112, poucos metros à frente do local onde a viatura ficou imobilizada. “Estava abraçada à minha filha, que começou a gritar, quando vejo um carro a sobrevoar as nossas cabeças”, disse. “Bateu sobre a direita do meu veículo, que ficou como se estivesse estacionado em espinha”, garantiu. “Esse veículo capotou em cima da mesma estrutura onde estávamos resguardadas.”
Questionada sobre se o veículo de Ivo Lucas vinha depressa, Cristina Branco respondeu que não viu, porque estava de costas, mas garantiu que a filha lhe disse que sim. “Estava a responder ao INEM e lembro-me muito vagamente do terceiro embate. Esse veículo [Tiago Pacheco] vinha desgovernado e bateu no que embateu no meu”, afirmou. Quando a autoestrada foi cortada, referiu que atravessou a via e perguntou a Paulo Neves se estava parado. “Assumi que também estava em choque, tal como eu”, contou. “Disse-me para eu tirar dali a minha filha, porque não era cenário para ela.”
Enquanto esteve a tentar proteger a filha junto ao separador central, Cristina Branco confirmou que passaram por elas “alguns carros, entre os quais um camião, o que foi bastante traumático, porque passou muito encostado a nós”. A advogada de defesa acrescentou mesmo que a fadista ficou com “amnésia traumática”, pelo que não se recorda do percurso entre o pórtico da autoestrada e o local do acidente. A filha ficou com o braço partido.
Colisão com destroços
Já Tiago Pacheco, o último interveniente no acidente, pronunciado por condução perigosa, disse estar convencido que não tinha batido no carro de Ivo Lucas, mas sim em “destroços” de vários tamanhos que se encontravam na via. “Recordo-me de, ao fundo da estrada, ver umas luzes laranja [piscas] do lado direito e de sentir o carro passar por cima de alguma coisa”, explicou. Quando o airbag dele e da namorada dispararam, encostou o carro à direita.
“Para mim, nunca bati num carro. Não senti o impacto de bater em algo, nem danos à frente tenho”, argumentou Tiago Pacheco. Contudo, o facto de o pneu da frente ter rebentado e os airbags terem disparado levaram-no a concluir que algo se tinha passado. “Disse à Carolina [namorada], não olhes para lado nenhum, porque vais lembrar-te disto para o resto da vida”, contou. Depois, disse que viu Ivo Lucas a passar na estrada e a perguntar onde estava a Sara, mas não os conhecia.
O arguido recusou a ideia de circular em excesso de velocidade, pois disse que, quando passou por um painel informativo, ia a 85 ou 86 quilómetros por hora. “A velocidade apontada (146 quilómetros por hora) não corresponde à minha perceção”, observou. Além disso, garantiu que nunca chegou a travar e que circulou sempre na faixa do meio, por questões de segurança.