A autora da muito esperada biografia de Luís de Camões, “Fortuna, caso, tempo e sorte”, afirma ter terminado a gigantesca empreitada "com a certeza da sua excecionalidade", rendida a uma obra "tão bela e intensa que ainda hoje nos interpela".
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Depois do muito elogiado volume dedicado a Agustina Bessa-Luís, "O poço e a estrada", Isabel Rio Novo voltou ao género biográfico. E logo com um projeto porventura ainda mais desafiante: a primeira biografia de Luís de Camões em largos anos.
Ao "Jornal de Notícias", a autora, duas vezes finalista do Prémio Leya, afirma que a aparente escassez de dados biográficos só a fez embrenhar-se ainda numa tarefa em que se confrontou com várias descobertas.
Cinco anos de trabalho intens(iv)o sobre a obra de um autor têm naturalmente efeito na forma como o vemos e lemos. Em que sentido Camões mudou aos seus olhos depois de escrever a biografia?
Como para muita gente, Camões era para mim um poeta genial, uma figura lendária, um símbolo. Agora, antes de tudo, é um homem, com quem convivi intimamente e de quem, certamente, não irei afastar-me. Dou por terminada a pesquisa que conduziu a esta biografia com a certeza da sua excecionalidade. Antes de mais, pela quantidade de experiências de vida que acumulou. Foi estudante, leitor e imitador dos autores clássicos. Movimentou-se entre as salas dos fidalgos, mas também nos ambientes do submundo, das tabernas, dos prostíbulos. Atravessou o mundo e viveu 17 anos em vários pontos do Oriente. Foi soldado e mutilado de guerra. Esteve preso, e algumas vezes por erros seus. Escreveu o que quis e também escreveu por encomenda. Conseguiu publicar a obra maior da nossa literatura, mas perdeu ou furtaram-lhe uma outra, que talvez tivesse igual valor. E mesmo se, em muitas dimensões, a existência de Camões foi a de muitos homens do seu tempo, a grande diferença é que o Poeta teve plena consciência dela, exprimiu as contradições a ela inerentes e deixou‑a escrita, de forma tão bela e intensa que ainda hoje nos interpela.
A opção de intitular a biografia de “Fortuna, caso, tempo e sorte” é curiosa. Qual o peso que cada um destes itens teve, em seu entender, no percurso de Camões?
Ao contrário de alguns colegas de ofício, quando estou a escrever um livro sinto necessidade de encontrar rapidamente o título, sendo que neste caso o subtítulo só poderia ser: Biografia de Luís Vaz de Camões. O título surgiu no próprio dia em que recebi o convite, em que o Paulo (o meu marido) me incitou a aceitá-lo e em que eu, tentando chamar-me a mim própria à razão, abri ao acaso um livro de poemas de Camões que pertenceu ao meu avô, à espera de um sinal, como teria dito Agustina. Encontrei logo o magnífico soneto que começa com o verso “Verdade, Amor, Razão, Merecimento”. Fortuna, caso, tempo e sorte são noções que, no século XVI, tinham um significado diferente do atual. A fortuna era o horóscopo do nascimento do indivíduo. O caso era a ocasião. O tempo referia‑se à estrela sob o signo da qual cada homem nascia. Quanto à sorte, correspondia à instabilidade das circunstâncias que iam atingindo o indivíduo. Eram estas as forças que, segundo Camões, regiam o “confuso mundo” e que tinham condicionado a sua existência. Ao longo do livro, vamos percebendo de que formas.
No livro “Camões, vida e obra”, recentemente publicado, Carlos Maria Bobone defende que, em função dos escassos conhecimentos objetivos sobre a sua vida, escrever uma biografia sobre este autor “é tão inútil como ilegítimo”. Como procurou contornar essas limitações para escrever a melhor biografia que conseguiu?
Ainda bem que não defendeu que é impossível, apenas “inútil e ilegítimo” (risos.) Não tenho conseguido acompanhar todas as publicações em torno de Camões que saíram nos últimos tempos. Mas, pegando apenas na afirmação descontextualizada que o Sérgio me apresenta, diria que se trata de uma opinião comum. Aliás, quando iniciei a pesquisa, encontrei um artigo relativamente recente, publicado por ocasião de um 10 de Junho, que dizia mais ou menos isto: «Não se sabe nada sobre a vida de Camões, a não ser que escreveu Os Lusíadas e recebeu uma tença. O resto é especulação e lenda.» Sentença terrível, pensei eu, não só pelo teor da mensagem, mas pelo tom quase ameaçador. Fiquei logo com vontade de querer saber mais. E foi o que fiz. Examinei de novo as fontes conhecidas. Reli os biógrafos antigos, antes de ler os mais recentes. Coligi contributos anteriores e relacionei informações dispersas. Pude descobrir documentos novos, senão relativos a Luís de Camões, relativos a indivíduos com quem é seguro que o Poeta se cruzou em determinadas circunstâncias e que, por isso, indiretamente, permitem elucidar certos passos da sua existência. Descobri o paradeiro de uma peça iconográfica, revelada em 1972, que estava extraviada. Com o contributo do Laboratório Hércules, da Universidade de Évora, esse retrato de Luís de Camões foi examinado à luz das tecnologias mais recentes. Os conhecimentos objetivos, por assim dizer, são sempre mais escassos do que uma biógrafa gostaria, mas ainda assim, reveladores, se os examinarmos com tempo, atenção e alguma humildade.
Nas últimas décadas, Camões foi protagonista de vários romances, mas não tanto de biografias. Como explica esse fenómeno?
Facilmente. São tantas as zonas nebulosas em redor de Camões que a dificuldade de as adentrar foi dissuadindo as tentativas biográficas (falando da biografia propriamente dita, enquanto aproximação rigorosa à verdade de um indivíduo). Esse esvaziamento foi compensado, digamos, pela recriação efabulada e pela multiplicação de obras ficcionais que tomaram ou tomam Camões como protagonista. Eu, que não as conheço todas, naturalmente, já encontrei o Camões fanfarrão, o Camões mulherengo, o Camões viajante, o Camões homossexual, o Camões virgem, o Camões que afinal morreu no Oriente e até o Camões momentaneamente falho de talento, entre outras espécies. Li muitas delas, note-se, e algumas com gosto, até porque são assinadas por autores de talento. Memoráveis ou não, não deixam de ser relatos mais ou menos fantasiosos de vidas de uma personagem inventada. E eu quis aproximar-me de Luís Vaz de Camões, o homem que existiu realmente. Até porque a vida dele não carece de artifícios romanescos para suscitar uma narrativa apaixonante.
Da última biografia de Camões até à sua passaram várias décadas. Houve muitos avanços no estudo da sua vida e obra nesse período que foram úteis para a sua pesquisa?
Muitos avanços no estudo da obra, no estudo da vida nem tanto, até por algumas das razões de que já falámos. Nasci precisamente em 1972, ano da comemoração do 4º centenário de Os Lusíadas. Tive por isso a sorte de crescer e de me formar num tempo de renovação dos estudos camonianos. As Reuniões Internacionais de Camonistas. O Centro Interuniversitário de Estudos Camonianos. O Dicionário de Camões, organizado por Vítor Aguiar e Silva. Os ensaios de Hélder Macedo. Os trabalhos da equipa coordenada por Rita Marnoto… E muitos outros. Sendo que a minha demanda era biográfica, nem por isso deixei de colher no trabalho desenvolvido por esses especialistas contributos relevantes para a minha pesquisa.
As comemorações dos 500 anos de Camões começaram por passar à margem das entidades oficiais e só muito tardiamente foi criada uma comissão. O que diz isso da forma como o nosso poeta maior tem sido visto e tratado pelo poder ao longo dos tempos?
Nada que Camões, com a lucidez que o caracterizava, já não tivesse apontado, de forma sucinta e incisiva, nos próprios versos de Os Lusíadas: “Porque quem não sabe arte, não na estima”.
O ensino tem tratado devidamente Camões?
Depende do que entendermos por ensino. Há professores que operam milagres com o tempo de que dispõem, os programas em vigor, as orientações a que estão submetidos. Mas até as nossas filhas (uma na faculdade e duas a terminar o 10º ano) tiveram dificuldade em discernir, através dos episódios recortados nos manuais de Português, aquilo que realmente eram Os Lusíadas. O problema está longe de se limitar a Camões, note-se, atingindo outros grandes autores da nossa literatura, mas talvez o caso de Camões seja mais flagrante, em razão da enorme qualidade do que escreveu e da forma como, ainda hoje, a sua poesia reúne todas as qualidades necessárias para interpelar os leitores, inclusive os mais jovens. Camões tem tudo para ser um nosso contemporâneo, para usar a expressão de Helder Macedo. Se isso não acontecer, a culpa nunca será de Camões.
Depois da biografia de Agustina Bessa-Luís terá prometido à família que essa seria a última investida no género, o que acabou por não se confirmar. Não há duas sem três, como assegura o ditado?
É verdade. Terminei a biografia de Agustina com a promessa, até perante mim mesma, de que tão cedo não me envolveria noutro projeto de tal exigência. Com o impulso decisivo do Paulo e o incentivo das minhas filhas, Fortuna, caso, tempo e sorte encaminharam-me noutra direção. Não há duas sem três, de facto. Mas, por agora, quero desfrutar deste momento e descansar um bocadinho na minha Ilha dos Amores.