Corpo do artigo
Uma minha amiga, que publica crónicas deliciosas sobre as memórias que guarda da cidade, brindou-me com a inesperada lembrança dos grilos no S. João do Porto.
Além de recordações, envergonhou-me pelo esquecimento deste pormenor magnífico da nossa tradição. De tal forma desaparecera dos meus sentimentos que dele nem fiz alusão no livro sobre o S. João. Nada. Nem em nota de rodapé. E con-cluí: já estou contaminado pelo cosmopolitismo performativo da pós-modernidade. Como esqueci o costume enraizado de comprar um grilo-macho e pô-lo na cozinha a animar os serões?
Em quase todas as casas do Burgo havia uma gaiola para ele. Com grades em arame, o tecto e o fundo eram pintados a rosa ou a vermelho. Os cantadores compravam-se pelas ruas, aos vendedores vindos de Ramalde, Paranhos ou dos arredores, que se dedicavam à tarefa de capturá-los pelos campos, usando uma palhinha para os expulsar dos buracos na terra, onde se acoitavam. Creio que até no Bolhão se encontravam os apanhadores de grilos, que deixavam à clientela o problema da escolha. Não davam garantias que cantasse.
As famílias habituavam-se ao cri-cri deste insecto caseiro que alimentavam, di-ariamente (se cumprisse a sua função), com uma folha de alface. A cascata, o man-jerico, o alho-porro atrás da porta (para dar sorte), o molho de cidreira para o chá-calmante e a gaiola do grilo eram parte integrante do S. João portuense. Onde isso vai! Hoje, comprá-lo e tê-lo em casa seria considerado parolo, atrasado. (Mas con-fesso ter saudades desse costume na cidade onde crescíamos. Deu-me para a nos-talgia. Desculpem o incómodo).
O autor escreve segundo a antiga ortografia