Filho de cirurgião pedófilo francês diz que crimes do pai foram "bomba atómica" para a família
Dois filhos do ex-cirurgião francês Joel Le Scouarnec, acusado de violar ou agredir sexualmente 299 pacientes, explicaram, na terça-feira, em julgamento, a devastação que o caso do pai trouxe à família.
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A maioria das vítimas do médico, que admitiu "atos abomináveis", eram crianças das quais abusou enquanto despertavam da anestesia ou em controlos pós-operatórios. Os abusos ocorreram numa dúzia de hospitais entre 1989 e 2014. Das 299 vítimas, 256 tinham menos de 15 anos e a mais jovem de todas tinha apenas um ano.
"A sua perversão explodiu como uma bomba atómica na nossa família", disse perante o tribunal de Vannes, no oeste da França, o seu filho mais velho, de 42 anos. "Não sei de onde vinha essa perversão. Nem sequer a entendo", afirmou, comparando o pai com "o doutor Jekyll e o senhor Hyde" do livro "O médico e o monstro", uma comparação que também foi usada pela mãe e ex-mulher do cirurgião de 74 anos.
O caso provocou indignação e repulsa na França, ainda em choque pelas recentes revelações do julgamento de Dominique Pelicot, condenado por reunir dezenas de desconhecidos para violarem a sua mulher sedada.
Antecedentes familiares
No início do julgamento na segunda-feira, Le Scouarnec reconheceu ter cometido "atos abomináveis" e afirmou que queria "assumir a responsabilidade" por eles, apesar de estar "consciente de que não se pode apagar essas feridas".
O próprio filho explicou no tribunal a sua dificuldade para encaixar essas revelações com a ideia que tinha do pai. "Tenho essas imagens na minha cabeça e vou tê-las para o resto de minha vida", afirmou.
O homem de 42 anos relatou no tribunal que ele mesmo foi violado e agredido sexualmente pelo avô, o pai de Le Scouarnec, quando tinha entre cinco e dez anos de idade.
Questionado se o cirurgião também foi abusado pelo próprio pai, respondeu: "Acho que sim, mas ele sempre disse que não."
Le Scouarnec já está preso devido a uma condenação em 2020 por abusar de quatro menores, incluídas duas das sobrinhas.
O filho mais novo, um eletricista de 37 anos, relatou ao tribunal que as suas lembranças eram de ter crescido numa "família normal" na qual algumas coisas "não eram faladas". "Tenho lembranças muito boas do meu pai", afirmou. Por essa razão, cortou o contacto com o pai quando os crimes vieram à tona: "Queria manter essa imagem dele", explicou.
Com o pai no banco dos réus, o filho mais novo disse que não acreditava ter sido ele mesmo uma vítima dos abusos, mas reconheceu que, após explodir o caso, tornou-se "um pouco paranóico". "Nunca deixo meu filho sozinho", afirmou.
Registo dos crimes
Uma comissão criada pelo governo para proteger os menores vítimas de abusos sexuais assinalou que as primeiras suspeitas de má conduta de Le Scouarnec dentro da família deveriam ter sido "reportadas imediatamente".
Na sua residência de Jonzac, onde vivia com as suas dezenas de bonecas, as autoridades apreenderam mais de 300 mil imagens de pedofilia, bem como milhares de páginas de listagens e diários no seu computador. O cirurgião anotava escrupulosamente os nomes de suas vítimas em cadernos, juntamente com os relatos dos abusos que lhes infligia sob os efeitos da anestesia, às vezes até mesmo na mesa de operação.
Numa anotação de 1996, Le Scouarnec escreveu: "ELA sabe que sou um pedófilo", numa aparente referência à mulher, que também esteve nesta terça no tribunal.
Em 2005, um tribunal de Vannes já o havia condenado a quatro meses de prisão, com suspensão de pena, por posse de pornografia infantil. Contudo, os crimes não foram revelados até 2017, pela denúncia de uma vizinha de seis anos.
A ex-mulher afirmou que só naquele momento descobriu as "predileções" do cirurgião. "Pergunto-me a mim mesma como pude ter ignorado isso completamente. É uma traição horrível para mim e para os meus filhos", afirmou numa entrevista ao jornal regional "Ouest France".