
Miss Portugal 2023 Marina Machete, a primeira mulher transgénero a vencer o concurso
Artur Machado/Global Imagens
“O que deve prevalecer é a autodeterminação, e não uma heteroavaliação”, defendem especialistas ouvidos pelo JN sobre a polémica gerada por Marina Machete ao ganhar o concurso Miss Portugal.
Marina Machete, de 28 anos, abanou a opinião pública e causou um debate intenso ao ter sido a primeira mulher transgénero a tornar-se Miss Portugal. A hospedeira de bordo vai representar o país no Miss Universo 2023, que se realizará em novembro, em El Salvador, na América Central.
Não faltaram comentários e opiniões, positivas e negativas, sobre esta vitória, que inflamou uma discussão já acesa. As posições mais negativas surgem, recentemente, de Joana Amaral Dias, num artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias”. A psicóloga clínica mostrou-se indignada com o facto de “um homem” ter ganho o concurso e afirmou que “alguém que nasceu com os cromossomas XY e que, por mais estética que aplique, por mais cirurgias a que se submeta, morrerá XY”.
A presidente da UMAR (União de Mulheres Alternativa e Resposta) considera que este tipo de discurso, que se repercutiu, nomeadamente, nas redes sociais, é “transfóbico e muito violento”. Liliana Rodrigues, também investigadora na FPCEUP (Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto), lembra que o que deve prevalecer é “a autodeterminação, e não uma heteroavaliação sobre as pessoas”.
O presidente da Opus Diversidades, Hélder Bértolo, acrescenta que estes comentários só surgem “pela falta de informação”, que resulta na “asneira e ignorância”.
Sandra Saleiro, investigadora no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia no ISCTE-IUL, refere que esta é “uma visão de que a identidade de género se define pela biologia, quando, na verdade, é definida como um sentimento íntimo e pessoal de pertença a determinado género”.
A questão dos cromossomas masculinos é também irrelevante para a discussão, segundo Liliana Rodrigues. “Quando pensamos em mulheres trans, pensamos em mulheres que foram designadas no registo de nascimento como homens, mas que sempre se identificaram como mulheres.
Pelo contrário, a autora de Harry Potter toma uma posição extremista em relação ao assunto. J.K. Rowling escreveu nas suas redes sociais que “as mulheres trans não são mulheres” e garantiu que não “se importaria de cumprir dois anos de prisão pelas suas opiniões”, em referência à proposta do Partido Trabalhista de "criminalizar ataques à identidade de género”.
“As pessoas não são robôs, são humanas”
A socióloga Sandra Saleiro explica que este debate “é um clássico” desde que a comunidade trans “começou a ter alguma visibilidade”. Considera que mais “surpreendente” é que “uma parte do movimento feminista mais conservadora” tenha vindo “reciclar argumentos biologistas”, refutando até “uma das prisioneiras do feminismo, Simone Beauvoir, que considerou que anatomia não é destino”.
Helder Bértolo diz que “pessoas que são contra os concursos de beleza, estarem agora preocupadas com o facto de mulheres trans lhes roubarem o lugar, é lamentável”. Liliana Rodrigues tem até “dificuldade” em considerar estas vozes “que se dizem feministas” como tal e reforça que “as pessoas não são robôs, são humanas”, sendo que todos têm o direito a serem reconhecidos “de forma digna”.
No entanto, a sociedade tem certos conceitos já “muito incorporados”. Sandra Saleiro explica que “antes de uma pessoa nascer, já lhe é atribuído um género”, o que provoca um “automatismo” que se baseia apenas “numa observação do corpo”. A partir desse momento, cria-se uma “expectativa” daquilo que uma pessoa vai ser “consoante se é menino ou menina”.
Sandra Saleiro pede então que este “automatismo” seja “desconstruído”, admitindo que há evolução nesse sentido: por exemplo, as pessoas trans são “a evidência de que sexo e género não são sinónimos”. Da mesma forma, Liliana Rodrigues insiste que é necessário “deixarmo-nos de ser os guardiões dos corpos e identidades das outras pessoas”.
