Festivais espanhóis com concertos cancelados devido a fundo de investimento polémico
Morriña Fest e Festival Internacional de Benicàssim, em Espanha, com boicote de artistas contra o KKR, fundo financiador dos festivais que terá ligações a Israel. Espectadores portugueses apanhados de surpresa com o movimento.
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Há artistas que fazem barulho quando cantam. E há outros que fazem ainda mais quando se recusam a subir ao palco. René Pérez Joglar, rapper mais conhecido como Residente ou Peso Pluma, cancelou os seus concertos no Festival Internacional de Benicàssim, que decorre entre os dias 17 e 19 de julho, e no Morriña Fest, na Corunha, nos dias 25 e 26 de julho.
Não foi por doença, nem por incapacidade. Foi por consciência. O motivo? A ligação destes festivais ao fundo de investimento norte-americano KKR, que o rapper acusa de financiar projetos associados à ocupação israelita da Palestina — desde tecnologia militar a urbanizações em colonatos ilegais.
“Não posso participar nem um só segundo em algo que esteja relacionado com esta tragédia”, disse o artista porto-riquenho num vídeo publicado nas redes sociais. “Contribuem, ainda que indiretamente, para o genocídio e a violação sistemática de direitos humanos contra o povo palestiniano”.
Residente não se ficou pelo protesto. Demarcou-se dos dois festivais espanhóis e pediu desculpa aos fãs. Admitiu que não sabe se a sua decisão terá consequências legais. “Mas não me importa”, garantiu. “A minha posição sempre foi clara sobre este tema”.
Portugueses protestam
Nuno Rocha, fã português, do Porto, que tinha adquirido bilhetes do Morriña Fest para ir ver Residente na Corunha, conta ao JN: "Perdi 75 euros. Mas foi por uma boa causa".
Mas o festival galego esclarece que procederá à devolução do dinheiro a quem o solicitar: "Os reembolsos devido ao cancelamento do Peso Pluma e/ou Residente serão efetuados se tiver o ingresso individual diário correspondente à sexta-feira, 25 de julho. Não haverá reembolso de ingressos para ambos os dias, nem será possível trocar ingressos de um dia para o outro. Se este for o seu caso, entre em contacto com ayuda@enterticket.es para que possamos ajudá-lo com o processo de reembolso".
Já Matilde Santos, de Coimbra, que ia assistir ao concerto de Residente em Benicássim não teve a mesma sorte. "Foi uma desilusão. Nós não sabíamos quem financiava o festival, mas isto não devia sobrar para nós", contou ao JN.
As cláusulas de devolução de bilhetes para o Festival Internacional de Benicàssim são explícitas: "Adiamento, cancelamento, transferência ou abandono do evento pelo artista, intérprete ou executante, promotores ou organizadores do evento não dão direito ao reembolso".
Um gesto com vários precedentes
É raro ver um nome com projeção internacional colocar os seus princípios acima dos contratos. Mas o gesto está longe de ser isolado: a artista espanhola Judeline fez o mesmo há dias, recusando atuar em Benicássim por motivos idênticos.
O Festival Sónar, de Barcelona, por sua vez, anunciou em maio que se desvinculava formalmente de qualquer relação com o fundo KKR e expressou solidariedade para com a população civil palestiniana “presa na catástrofe humanitária em Gaza”.
A pressão tem aumentado. Há cerca de um mês, dezenas de DJ e músicos nacionais e internacionais apelaram, numa carta pública, ao boicote, desinvestimento e sanções contra Israel. O ministro da Cultura espanhol, Ernest Urtasun, reagiu dizendo que a presença desse fundo em eventos culturais “não é bem-vinda”. O primeiro-ministro Pedro Sánchez foi mais longe: pediu a exclusão de Israel do Festival da Eurovisão.
O que é o KKR
O fundo KKR, criado em 1976, é tudo menos irrelevante. Tem presença forte nos sectores energético, alimentar e tecnológico. Desde o verão passado, detém a Superstruct Entertainment, grupo que gere vários festivais europeus, incluindo o Sónar, o Viña Rock e o próprio Festival de Benicássim. Entre os seus investimentos estão empresas israelitas de cibersegurança e plataformas imobiliárias envolvidas na construção de colonatos judeus em territórios palestinianos ocupados.
O movimento cívico BDS - Boicot Desinversion y Sanciones (Boicote, Desinvestimento e Sanções), que tem pedido estes boicotes, esclarece: "Não se trata de apontar o dedo ao público que só quer ver um concerto. Mas é impossível ignorar que há palcos financiados por quem lucra com a ocupação e o conflito. E é impossível não reconhecer a coragem de quem decide sair de cena, sabendo o que isso implica".
Depois de ser alertado pela sua equipa de gestão das redes sociais, foi Residente quem chamou a atenção para a ligação dos festivais à KKR. “Falei com jornalistas, amigos e investigadores para confirmar. E tomei a decisão [de não atuar em Benicássim e no Morriña Fest]”, explicou.