"A força invisível": Mais de 34 mil trabalhadores domésticos registados em três anos
A remuneração de referência está situada nos 552 euros a 30 dias. “O desconto por hora é um desconto abaixo do valor do salário mínimo, o que significa que as pessoas vão ter uma reforma de miséria”, alerta o sociólogo José Soeiro.
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Mais de 34 mil pessoas foram registadas no Instituto da Segurança Social (ISS) como trabalhadores domésticos, desde a entrada em vigor das novas alterações ao trabalho doméstico, em maio de 2023, no âmbito da Agenda do Trabalho Digno. Com base nestes registos, foi possível apurar que estes trabalhadores têm uma remuneração de referência de 552 euros. O valor baixo poderá indicar que a maioria trabalha e é paga ao dia ou à hora. São sobretudo mulheres, portuguesas, com idades entre os 50 e os 64 anos. O alargamento da proteção social ao subsídio de desemprego é uma das próximas prioridades para a chamada “força invisível”.
“Nos últimos anos, o número de trabalhadores domésticos registados estava consecutivamente a descer”, aponta o sociólogo José Soeiro. Em 2001, 174.589 trabalhadores deste setor pagavam contribuições à Segurança Social. Já em 2022, o número passou as 63.114 pessoas, uma redução de quase 59%, segundo o livro branco “Trabalho Doméstico Digno”, promovido pelo Sindicato dos Trabalhadores de Serviço de Portaria, Limpeza, Domésticas e Atividades Diversas (STAD). No mesmo período, o número de entidades empregadores de domésticas - a força de trabalho é maioritariamente feminina - “praticamente não se alterou”, realça o documento.
O antigo deputado do Bloco de Esquerda, que acompanhou de perto as mudanças na lei do serviço doméstico, acredita que a criminalização do trabalho não declarado, prevista na lei desde maio de 2023, gerou uma “espécie de sobressalto positivo nas famílias” e, por conseguinte, levou ao aumento dos registos na Segurança Social. Por outro lado, também os trabalhadores domésticos ficaram mais informados sobre os seus direitos.
Abaixo do salário mínimo
Apesar das mudanças, a profissão continua a enfrentar problemas. Entre os trabalhadores registados entre maio de 2023 e maio deste ano, a remuneração de referência a 30 dias, utilizada para o cálculo de prestações sociais e das pensões de velhice, estava situado nos 552,26 euros, segundo dados enviados pelo ISS ao JN.
Para efeitos das contribuições pagas à Segurança Social, há dois regimes sobre a remuneração das domésticas: convencional e real. O primeiro é calculado sobre o indexante dos apoios sociais (522,50 euros), o segundo tem por base o salário mínimo nacional (870 euros). “O desconto por hora é um desconto abaixo do valor do salário mínimo, o que significa que as pessoas vão ter uma reforma de miséria”, afirma José Soeiro sobre o regime convencional.
O grupo de trabalho constituído pelo Governo de António Costa, em março de 2023, para analisar o regime de segurança social do trabalho doméstico concluiu que as “remunerações de referência baixas” neste setor não “refletem sequer de forma aproximada o nível de retribuição auferido por este grupo de trabalhadores”.
Na prática, uma empregada doméstica até pode receber sete euros por hora, já que esse valor é acordado entre trabalhador e patrão. Contudo, diz José Soeiro, no regime convencional, a quantia descontada incide sobre o “valor mínimo padrão” definido na lei: 3,01 euros por hora, segundo o indexante dos apoios sociais. A consequência no futuro são pensões baixas, uma vez que estão a descontar pouco todos os meses, alerta o sociólogo.
Rever proteção
Por outro lado, no regime convencional “não há acesso ao subsídio de desemprego”, continua o também professor da Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Vivalda Silva, coordenadora do STAD, recorda que a proteção social dos trabalhadores domésticos em situações de desemprego é uma das exigências do sindicato. O Governo da AD admitiu, na última legislatura, rever e alargar a proteção social a estes trabalhadores, avançou o jornal “Público” em janeiro deste ano.
Vivalda Silva relata que continua a não ser fácil “ter informação sobre o setor doméstico”. “Não conseguimos falar com estes trabalhadores como nos outros setores. Não se consegue chegar a uma casa particular e falar com as domésticas. Nem sabemos onde é que elas estão a trabalhar”, diz. A responsável sindical acrescenta que muitas têm receio de falar. “Costuma-se chamar invisíveis às trabalhadoras de limpeza industrial, mas eu acho que as domésticas são muito mais invisíveis. Nós não as vemos e eu acredito que continuam a existir situações preocupantes”, alerta a coordenadora do STAD.
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Total de registos
O sociólogo José Soeiro acredita que o número total de trabalhadores domésticos registados na Segurança Social e a efetuar descontos andará à volta dos 90 mil. Os dados oficiais comunicados pelo ISS indicavam haver 226.380 trabalhadores registados em abril de 2024. Contudo, o docente universitário alerta que poderá haver “algum problema” na forma como o sistema informático está a contabilizar as entradas e as saídas da profissão. “O número parece-me inflacionado”, diz.
Denúncias
A Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) avança ao JN ter recebido 13 denúncias entre 1 maio de 2023 e 31 de maio deste ano sobre “trabalha doméstico”. “Contudo, o sistema de recolha de dados não permite maior detalhe”, adianta a mesma fonte.
Deduções
Na declaração de IRS de 2024, foi possível deduzir a despesa com trabalho doméstico. O Ministério das Finanças apontou ao JN que será possível saber quantos contribuintes deduziram estas despesas “no final da campanha de entrega de IRS deste ano”.
Pergunta e resposta
Quem é que é considerado trabalhador doméstico?
Segundo a Segurança Social, são considerados trabalhadores domésticos quem, mediante uma remuneração, efetuar tarefas que satisfaçam as necessidades de um agregado familiar, como a limpeza da casa, lavagem de roupas, confeção de refeições, a vigilância e a assistência a crianças, pessoas idosas e doentes e o tratamento de animais domésticos.
O que a lei n.º 13/2023, de 3 de abril, veio mudar no setor doméstico?
A lei do serviço doméstico trata-se de um regime especial e autónomo do Código de Trabalho. O facto de ser um diploma à parte da restante legislação laboral continua a gerar muitas críticas. A partir de maio de 2023, no âmbito da Agenda do Trabalho Digno, foram efetuadas algumas alterações, como a criminalização dos empregadores pelo trabalho doméstico não declarado (pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias) e o horário de trabalho semanal fixado nas 40 horas.
Como são feitos os descontos para a Segurança Social?
Depende da remuneração declarada: convencional ou real. No regime convencional, com pagamento ao mês, à hora ou semanal, o valor é calculado com base no indexante dos apoios sociais (522,50 euros por mês, 17,42 euros por dia e 3,01 euros por hora). Na remuneração real, o valor de referência é o salário mínimo e os descontos incidem sobre esse valor (870 euros).
Um trabalhador doméstico ganha à hora. Qual o valor dos descontos para a Segurança Social?
No regime convencional, e com base no indexante de apoios sociais (3,01 euros por hora), a base contributiva tem de ter o mínimo de 30 horas (28,3%). Se o trabalhador fizer 30 horas, os descontos para a Segurança Social serão de 25,55 euros: 17,07 euros da entidade empregadora e 8,49 euros do trabalhador.
Os trabalhadores domésticos têm direito a subsídio de desemprego?
Se estiverem no regime de remuneração real, sim. Os trabalhadores domésticos no regime convencional não têm direito a proteção social no desemprego. O grupo de trabalho criado em março de 2023 admitia a possibilidade de se ter de aumentar as taxas contributivas para garantir subsídio de desemprego a quem trabalha à hora.