Eddie Vedder subiu ao palco principal do Super Bock Super Rock com uma hora de atraso, às 2 horas da madrugada, mas os milhares que se encontravam no recinto não esmoreceram e receberam-no com toda a devoção a que o vocalista dos Pearl Jam já está habituado. Cat Power e Legendary Tigerman foram os convidados especiais do concerto mais concorrido da 20.ª edição do festival.
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Os problemas técnicos causados pela chuva no palco EDP, o único sem cobertura, atrasaram os concertos de Cat Power e Sleigh Bells, mas também afetaram o início da atuação de Eddie Vedder, para indignação dos milhares que o aguardavam há várias horas em frente ao palco principal.
Às 2 horas, uma hora depois do previsto, o músico entrou em palco para mais de duas horas de espetáculo, dando as boas-vindas à multidão com versões acústicas das canções dos Pearl Jam. "Corduroy" e "Throw Your Arms Around Me" (canção dos australianos Hunters and Collectors mas popularizada pela banda de Seattle) foram as primeiras a ouvir-se, seguindo-se "Sometimes" e "Wishlist".
"Boa noite e saúde", disse Vedder, erguendo um copo de vinho para brindar a plateia. Sozinho em palco e num cenário intimista, pontuado por uns ténues focos luminosos, Eddie Vedder parecia estar a receber a multidão na sua sala de estar. Sentado e de guitarra debaixo do braço, estilo descontraído, demorou-se em histórias e confidências com o público ou a degustar o vinho tinto (certamente português) entre canções. Na cábula que o acompanhava, leu num português esforçado: "Foi há dois anos que estive em Portugal. É bom estar de volta." O público aplaude o esforço e o regresso do homem que assume os comandos dos Pearl Jam.
Eddie Vedder está lá, as canções de Pearl Jam também, mas a música aqui é outra. Não há duelos de guitarras nem baterias possantes, apenas Vedder com a sua voz inconfundível, uma guitarra ou o ukulele, pé no bombo volta e meia e a harmónica a adornar algumas canções.
A incursão pelo "Ukulele Songs", disco de 2011, deu-se com "Sleeping by Myself", "Without You" e "Tonight You Belong to Me", com a convidada especial que todos esperavam ver subir ao palco: Cat Power. Cúmplices em palco, partilharam a canção e o vinho, sorrisos e vozes que deleitaram a multidão.
"Se vais falar sobre guerra, é melhor teres alguém ao teu lado", advertiu Vedder, convidando Legendary Tigerman - a quem teceu largos elogios - para partilhar uma versão de "Masters of War", de Bob Dylan. Politicamente atento e interventivo, não deixou de mencionar o fatídico abate do Boeing 777 da Malaysia Airlines e de esclarecer a polémica gerada pelo discurso que fez em defesa da paz entre Israel e a Palestina num concerto dos Pearl Jam, na semana passada, que muito irritou os fãs israelitas da banda. "Se fores antiguerra não quer dizer que estejas a favor de um dos lados. Seres antiguerra é seres pró paz, pró amor, pró diplomacia", justificou.
Declaração de intenções assinada antes de tocar "a canção mais poderosa alguma vez escrita" - "Imagine", de John Lennon. Avisou que nunca a canta em palco mas que o momento assim o exigia. O público transformou-se num só para entoar este hino à paz.
"Last Kiss" foi cantada entre o público, que estendia os braços para o homem que protagonizou o primeiro (e talvez único) concerto com casa cheia no festival. "Better Man" aqueceu os corações dos fãs antes de um encore celebratório com "Hard Sun", que levou para palco o baterista de Tigerman, Paulo Segadães, Cat Power e os três elementos da sua banda.
Ainda a debandada do palco principal não tinha começado e no EDP já se ouvia o duo americano Sleigh Bells, que tinha a atuação agendada para as 22.30 horas mas só às 4 horas da madrugada pôde começar a tocar. Indiferente a este rebuliço ficou o músico francês Woodkid, que, entre concertos adiados e indefinições, conquistou uma vasta plateia neste regresso a Portugal.
Inicialmente marcada para a meia-noite, a aparição de Cat Power só aconteceu uma hora mais tarde depois de uma barafunda tremenda de modificações de horários causados pelos efeitos da chuva no palco EDP. A estrutura, pensada para o público fruir as árvores, não tinha cobertura e a inesperada queda de água do céu causou receios com a electricidade - foi preciso encobrir o cenário para evitar males maiores. Essa operação trocou as voltas ao horário previsto. A mulher, com concerto marcado para um palco secundário, até recebeu a cortesia de Eddie Vedder, que fez questão de não subir ao seu (outro) palco enquanto ela estivesse em cena.
Cat Power, aliás, Chan Marshall, 42 anos a abarrotar de charme, lá surgiu no seu tropeço deleitoso - a sacudir as pernas, costas verticais e o cabelo atrapalhado na nuca. Dizia-se em surdina que ela chegara a Lisboa irritada com um atraso do avião, fatigada e pouco dada a grandes generosidades. Mas cedo se percebeu que a madame estava em alta, a arremessar beijos para a massa humana, sorrisos perdidos no seu desatino peculiar.
Abriu o concerto com "The greatest", aquela voz grave a infiltrar-se-nos no peito, ela balançante a dominar a sua banda. Até podia - e devia - estar com uns copos valentes (tal como 99% do público) mas estava bafejada pela inspiração: não desafinou, não fez fitas como outrora, não fez frete. Passou por "The Moon" ou "Belly" e desaguou, no final, em "Ruin". Despediu-se com um ramo de rosas brancas na mão, a desembainhar uma de cada vez e a lançá-las para o público. Desapareceu de cena depois de amarrotar uma quantidade considerável de corações.
O músico português Paulo Furtado preparou um concerto único com o seu projeto The Legendary Tigerman para a 20.ª edição do Super Bock Super Rock, fazendo-se acompanhar por uma mão cheia de convidados e um quarteto de cordas. O "one man show" por excelência trouxe o seu mais recente disco, "True", editado este ano, com "Do Come Home" a ser uma das primeiras canções do novo registo a ecoar no recinto. Os primeiros pingos de chuva fizeram-se sentir na velhinha "Naked Blues", mas ainda ligeiros, sem assustarem a multidão.
"Green Onions" contou com Filipe Costa nas teclas e "Wild Beast" - ambas do novo trabalho - levou ao palco o quarteto de cordas que já se havia ouvido no início do espetáculo e o baterista Paulo Segadães. É o mesmo rock 'n' roll que está no bilhete de identidade de Tigerman, mas aqui coadjuvado por mais instrumentos que, a espaços, lhe conferiram um tom orquestral.
Alex d'Alva Teixeira e Ana Cláudia Gonçalves subiram ao palco para interpretar "These Boots Are Made for Walkin'", a canção imortalizada por Nancy Sinatra, enquanto a chuva caía mais intensamente e os menos afoitos tentavam encontrar uma zona coberta. Antes, os americanos Cults abriram a segunda noite de concertos no palco principal da Herdade do Cabeço da Flauta, que durante a tarde foi enchendo ao sabor dos fãs dos Pearl Jam.
Neste segundo dia ocorreram ainda duas boas manifestações da música rap no palco Antena 3. A primeira aconteceu com o rapper brasileiro Emicida. O cantor, uma das grandes figuras do atual cenário do hip-hop brasileiro, atuou no mais modesto dos três palcos mas conseguiu seduzir uma multidão considerável. Pena que o som estivesse vagamente obtuso e o volume da sua voz se apresentasse demasiado alto, o que acabou por fazer com que o público não percebesse parte do que cantava.
Fez-se acompanhar por uma banda qualificada e debitou canções de um disco que tem furor no outro lado do Atlântico: "O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui". Emicida tem milhões de fãs no Brasil; há-de granjear muitos por cá, é só uma questão de tempo.
Foi, todavia, com Capicua, a rapper do Porto, que o hip-hop viveu uma impressionante erupção neste festival de rock. A moça foi responsável pela maior enchente vivida naquele palco - no interior de uma tenda branda em forma de charuto - e o público transbordava dezenas de metros para as redondezas. Lá dentro, o ambiente era abrasador.
Capicua, nativa de Cedofeita, surgiu acompanhada por outra MC, um dj e um artista que desenhava em tempo real em projeção num ecrã no palco. A rapper disparou canções de "Sereia Louca", cantou sobre a condição feminina em faixas como "Mulher do Cacilheiro", desfraldou rimas sem música sobre condições laborais, fez trapézio silábico e malabarismo vocabular. Particularmente aplaudida foi a canção "Medo do Medo".
"Eles têm medo de que não tenhamos medo", cantou, certeira. E minutos depois não aguentou: a tenda estremecia em devoção e ela até chorou perante tamanho carinho. "Diz-me qual é o teu perfume favorito?", cantou. "Pão quente, terra molhada e manjerico". Não foi apenas uma das melhores atuações desta edição do Super Rock - foi, para já, um dos melhores concertos que o JN testemunhou este verão.