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Como se esperava, a Câmara de Guimarães teve que devolver cerca de três milhões de euros à União Europeia, em vista da sua candidatura irregular a fundos comunitários, aquando do Euro 2004 e da recuperação do estádio D. Afonso Henriques. Só este facto, já consumado, seria por demais politicamente embaraçante, já que constitui prova irrefutável da incompetência e da falta de rigor com que o assunto foi tratado pela Câmara de Guimarães. Mas não. Porque, entretanto, o governo transferiu, do Orçamento Geral do Estado, isto é, do bolso de todos nós, a mesma verba para compensar o orçamento municipal, contra todo o sentido de pudor a Câmara de Guimarães gritou vitória, numa extreme inversão de valores, só possível num pensamento e numa acção políticas típicas de uma "república das bananas".
Criminalmente
Mas este é apenas parte do problema. A outra parte não é apenas do foro administrativo, mas criminal. O assunto explica-se de modo simples. A propriedade do estádio a recuperar (ou o direito de superfície) era condição sine qua non, autenticamente necessária, para que a Câmara Municipal de Guimarães se candidatasse ao programa comunitário respectivo. Ora, toda a gente sabia (a começar pelo presidente da Câmara de Guimarães, que tinha vendido o estádio ao Vitória uns anos antes) que o estádio não era propriedade municipal, mas propriedade do clube. Logo, a Câmara de Guimarães não se poderia ter candidatado ao programa comunitário que libertou os fundos que agora teve que devolver.
Mas mais. A Câmara de Guimarães (para cumprir aquela absoluta necessidade de candidatura) teve que fazer prova da propriedade do Estádio D. Afonso Henriques. Ora, nesse sentido (e não podia ser outro), apresentou um registo predial que sabia desactualizado (desconforme com a situação jurídica de facto), em que se atestava a propriedade municipal do D. Afonso Henriques.
Diz agora a Câmara de Guimarães, contra todas as evidências, que a apresentação do registo predial não visou atestar a propriedade do D. Afonso Henriques mas a apenas a sua existência! No entanto, como é sabido e doutrinariamente fixado, a função do registo predial não é nem nunca foi essa. Mas, ainda que assim fosse (que não é, como o demonstra com notável clareza o parecer do conselho consultivo da PGR relativo a este assunto), não se sabe como garantiria a Câmara Municipal de Guimarães a propriedade do D. Afonso Henriques.
As provas
Contra todas estas explicações absurdas, a Câmara Municipal de Guimarães não tem só, porém, o direito, que os seus advogados e mais elementar bom senso deveriam conhecer. Também tem a realidade. É que, durante meses, como está documentalmente atestado, a Câmara de Guimarães andou a sustentar, exactamente, a propriedade do D. Afonso Henriques, primeiro e, depois, com a cabeça perdida, já não do estádio, mas do terreno onde está implantado, dizendo que, finalmente, tinha vendido o estádio mas não o terreno da sua implantação!
Vejam-se as seguintes notícias (não desmentidas) e declarações de António Magalhães e António Castro a vários jornais: "Curiosamente, o presidente da câmara é peremptório afirmado que 'perante os documentos, o estádio é da Câmara', o que não se compreende se a edilidade sabe que em 1990 o alienou em favor do Vitória num acto em que as duas entidades estiveram representadas precisamente por António Magalhães e o presidente do Vitória" (Comércio de Guimarães, de 27/08/03): ou ainda, "para receber as verbas do FEDER, 'a câmara tinha que provar ser dona do terreno. Ora, em 1991, a câmara vendeu o estádio ao Vitória mas não os terrenos', justificou aquele responsável (António Castro), concluindo que a câmara tinha o direito de apresentar o registo de propriedade dos terrenos ao gestor do FEDER'" (jornal Público, 9/2003); e mais ainda, "Hermínio Loureiro lembrou que, no processo de atribuição dos fundos comunitários através do III Quadro de Apoio Comunitário (QCA), que decorreu entre Janeiro e Outubro de 2002, o próprio edil, António Magalhães garantiu a propriedade dos terrenos" (jornal Público, 20/10/ 2003). Por último, leia-se Pimenta Machado, que nunca foi processado por dizer o que disse: "A Câmara de Guimarães, sem dar conhecimento ao Vitória, socorreu-se do registo de propriedade, antes de Agosto deste ano, e escondendo a escritura, candidatou-se aos fundos da União Europeia, alegando que o estádio estava na sua posse. Nada temos a ver com isso. São factos que nos ultrapassam." (Jornal A Bola, 2/10/2003).
Poder-se-iam apresentar muitos outros exemplos em que a Câmara de Guimarães sempre tentou sustentar a propriedade, pelo menos, do terreno onde se encontra construído o estádio D. Afonso Henriques, visando, pois, dar-se como proprietária desse bem, embora o tenha vendido uns anos antes.
Ora, em face disto, há ou não tentativa, por parte da Câmara de Guimarães, de enganar a União Europeia, recebendo subsídios que doutro modo não auferiria daquela fonte? Se sim, se tentou enganar a União Europeia, a Câmara de Guimarães e o seu presidente cometeram uma fraude, um crime. Se não, não. A resposta a esta pergunta será dada pelo Ministério Público, primeiro, e por um magistrado judicial, depois.
Mas, como estamos num país democrático e liberal, e em presença de toda a informação pertinente, também compete aos cidadãos tecer um juízo sobre o caso. Ora, tecer um juízo, neste caso, é expressar uma convicção, sustentadamente, sobre o que ocorreu, isto é, sobre se ocorreu uma fraude, um crime, ou não. Acontece que o presidente da Câmara de Guimarães e, suspeito, alguns agentes judiciais, acham que isso não é possível. Acham que um juízo dos cidadãos sobre este caso, um juízo sobre o cometimento, ou não, de um crime de fraude na obtenção de subsídio, é apenas prerrogativa dos tribunais e que, consequentemente, sequer as suas decisões podem ser criticadas, pois se não se podem emitir juízos antes de decisões judiciais sobre factos públicos, muito menos se podem tomar depois, eventualmente criticando-as.
O assunto pode parecer paroquial, mas não é. O que aqui está em causa é o traçado dos limites das liberdades individuais, perante agentes do estado que parecem ter uma concepção estatista e totalitária (com enormes tradições no nosso país) das relações entre o poder público (seja ele político ou judicial) e os indivíduos, isto é, uma concepção onde os juízos sobre o bem e o mal das acções do Estado (e sei lá se dos particulares) só competem ao Estado e nunca aos indivíduos. Pese embora a natureza juridicamente demo-liberal do nosso regime político, há tradições que, fundas no inconsciente, ainda não foram superadas por uns tantos.
O móbil oua falta dele
Por último, a derradeira argumentação tentando elidir a responsabilidade do Presidente da Câmara (e outros) em toda esta confusão, é a de que não havia móbil para o suposto crime, já que, como se viu, a Câmara foi ressarcida do dinheiro que teve que devolver. Esta argumentação, sendo indigente, não deixa de ser espertalhona. Tenta afastar o dolo da acção da Câmara de Guimarães. Acontece que havia, houve, um móbil para aquela forma da candidatura municipal, não cumprindo as regras e fazendo induzir em erro as instituições comunitárias. Esse móbil era conseguir que o Euro 2004 fosse para Guimarães (no âmbito de uma competição política dura entre vários municípios) de modo a que o poder político pudesse aparecer a cortar a fita da inauguração e a mostrar o Euro 2004 no activo das realizações eleitorais, conseguindo votos. O móbil foi o móbil político. Se o Governo soubesse, há partida (e naquela difícil conjuntura económica), que teria que despender o dinheiro que agora despendeu, diminuiriam as hipóteses de Guimarães ter sido cidade hospitaleira do Euro 2004. Mas, ainda que não houvesse móbil o acto foi cometido. Ora, a gratuitidade de um crime (numa sociedade responsável) talvez seja, até, mais culposa que a sua motivação.
