Com o mercado de automóveis usados com números bem mais saudáveis do que o de veículos novos, multiplicam-se os stands de porta aberta e as vendas à beira da estrada, muitas vezes com desagradáveis surpresas para os compradores, quando adquirem viaturas com quilometragens (muito) adulteradas.
Comerciantes menos escrupulosos abastecem-se no mercado europeu, principalmente no alemão, comprando barato viaturas com 200 ou 300 mil quilómetros que, pelo caminho, "perdem" mais de metade.
O fenómeno é difícil de quantificar, mas um estudo oficial e recente da União Europeia estima que, dos cerca de 2,4 milhões de viaturas usadas comercializadas entre estados-membros, 30% e 50% tinham a quilometragem reduzida através da adulteração do aparelho que a mede, o odómetro. Este estudo é o mais completo feito no espaço europeu e aponta também para que as fraudes causem, por ano, um prejuízo à economia e aos consumidores de entre 5,6 e 9,6 mil milhões de euros, sem contar com os custos ambientais.
O facto de para o comprador ser difícil perceber que está a comprar "gato por lebre" preocupa a Associação Automóvel de Portugal (ACAP) e a Associação Portuguesa do Comércio Automóvel (APDCA), que representa o sector do comércio de usados.
"O fenómeno só desaparece ou abranda com a criminalização da adulteração da quilometragem. Já abordamos o Governo nesse sentido, mas nunca obtivemos resposta às nossas sugestões. Também podíamos adotar as práticas da Bélgica e dos Países Baixos, onde todas as intervenções em oficina e as inspeções periódicas ficam registados. O dono do carro, quando o vende, tem de certificar num documento os quilómetros reais da viatura. E é penalizado em caso de adulteração", referiu ao JN Hélder Pedro, secretário-geral da ACAP.
A associação já abordou o assunto junto de congéneres europeias para implementar a gestão centralizada das viaturas no mercado de usados. Mas, para já, apenas a Bélgica e os Países Baixos partilham estes dados. Em 2018, tendo por base o estudo referido, o Parlamento Europeu (PE) aprovou uma resolução recomendando à Comissão uma iniciativa legislativa para endurecer o combate à fraude com quilometragem e a criminalização, mas que até hoje não teve consequências. Apenas em seis países a simples adulteração do odómetro é criminalizada - em França dá até dois anos de cadeia. Os restantes apenas preveem multa. A proposta do PE previa, também, a criação de registos nacionais de quilometragem acessíveis a todos os estados-membros, a adoção do sistema belga e dos Países Baixos e a obrigação de os fabricantes incluírem mecanismos de segurança nos odómetros. De resto, apenas a burla consumada após a venda dá origem a processo-crime.
Regulamentação inexistente
Também os comerciantes de automóveis estão sujeitos a ser enganados quando importam automóveis. Nuno Martins da Silva, presidente da APDCA, reforça a importância de "comprar em fornecedores que possam garantir a veracidade dos quilómetros". "A ganância é muita, os escrúpulos escasseiam e a regulamentação é inexistente o que facilita, e muito, as práticas ilegais, razão pela qual defendemos a criação urgente da Cédula Profissional", sublinhou.
"Estar atento ao desgaste do revestimento dos pedais, volante e botões é importante, mas nada garante. É fácil encontrar na Alemanha ou em França viaturas sem sinais de desgaste e com 200 ou 300 mil quilómetros. Deve sempre desconfiar-se do preço demasiado baixo, da sobrevalorização anormal da retoma e, sobretudo, deve-se escolher viaturas com o Selo de Garantia obtido através do Programa de Certificação que a APDCA irá anunciar em breve", referiu o responsável, defendendo, ainda, a adoção do modelo espanhol que tributa a venda de veículos entre particulares.
Alguns fabricantes permitem saber histórico europeu
Marcas como a Mercedes e a Porsche conseguem saber os quilómetros de qualquer viatura vendida na Europa, quando fazem as respetivas revisões, enquanto outras, como a Toyota, valem-se das garantias alargadas (sete anos) para conhecer o histórico dos modelos.
Nos híbridos nipónicos, por exemplo, a garantia de dez anos das baterias obriga a revisão anual, pelo que é possível saber os quilómetros exatos de um usado com dez anos.
A Volvo só sabe o histórico dos carros assistidos num determinado concessionário ou quando as viaturas são chamadas à oficina para resolução de problemas.