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A digitalização do ensino está em risco? De todo

Notícias vindas de países pioneiros nesta área fazem repensar aposta massiva, mas especialistas garantem que um recuo total está fora de questão. É tudo uma questão de equilíbrio.

Sónia Santos, professora do 1.° Ciclo do Ensino Básico há quase 30 anos, sempre teve um certo fascínio pelo digital. Ao longo dos anos, foi fazendo formações várias, desde a gamificação em sala de aula às novas tecnologias, começou cedo a usá-las numa perspetiva de consolidação de conhecimentos, já desde o velhinho Magalhães (computador portátil de baixo custo que começou a ser distribuído a crianças do 1.° Ciclo em 2008, por iniciativa do então primeiro-ministro José Sócrates). Depois, em 2021/22, apanhou a boleia da Escola Digital, programa gizado no âmbito do Plano para a Transição Digital com o objetivo maior de disponibilizar às escolas, alunos e professores equipamentos e acesso à Internet. "Cada aluno tinha a possibilidade de requisitar um equipamento e começaram a trazer o computador para a escola uma vez por semana, mais para usarem aplicações de aprendizagem, na área do Português e da Matemática." Na altura, tinha uma turma do primeiro ano.

Depois, nos anos que se seguiram, o tempo de utilização do computador em sala de aula e o número de atividades que faziam em ambiente digital foram aumentando gradualmente. Produção de texto, pesquisa segura, no quarto ano começaram até a explorar a inteligência artificial. Na hora do balanço, confessa-se uma "defensora acérrima" da tecnologia, mas sempre com "conta, peso e medida". "Obviamente, não é uma utilização cega nem única." Entende que ajuda a reforçar a motivação dos garotos, que proporciona ferramentas importantes para a consolidação de conhecimentos e um feedback adequado, que os ajuda a fazerem parte do processo. Mas sim, também há riscos. Desde logo ao nível da pesquisa, caso ela ocorra fora de "ambientes protegidos". Nota também uma dificuldade acrescida ao nível da leitura e da ordenação de conhecimentos em ambiente digital e, nalguns casos, um certo impacto comportamental. "E sobretudo não me parece que faça sentido uma utilização constante, sobretudo entre os mais novos, porque mexer no lápis e no papel continua a ser fundamental."

A questão está na ordem do dia, desde logo pelas notícias que nos vão chegando de países precursores da digitalização do ensino. Há um ano, mais coisa menos coisa, foi notícia o regresso dos livros, dos cadernos e das canetas a certas salas de aula finlandesas, algo que não acontecia desde 2018. A decisão derivou, em grande medida, dos resultados do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), que apontaram não só um declínio nos resultados médios em literacia matemática e outras competências, como níveis elevados de distração.

O mesmo caminho parece estar a ser trilhado na Suécia, país pioneiro na digitalização do ensino, em que a prioridade é agora "regressar ao essencial". Recentemente, numa entrevista dada ao "Público", Johan Pehrson, ex-ministro da Educação sueco, disse mesmo que se tinha ido demasiado longe no uso de ecrãs nas escolas. "Fomos ingénuos", defendeu. Em Portugal, em grande parte à boleia do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), têm sido dados passos significativos no caminho da digitalização, desde a distribuição gratuita de centenas de milhares de computadores portáteis a alunos e professores a projetos-piloto envolvendo a utilização de manuais digitais. E que resultados tiveram?

No final do último ano letivo, um estudo da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC) a esses mesmos projetos concluiu que não existem efeitos significativos nos resultados dos alunos. Em função disso, o Governo deu, este ano, a possibilidade de as escolas a partir do 2.° Ciclo adotarem a utilização de manuais digitais, obrigando-as a dar uma "justificação de adequação pedagógica". Na prática, os estabelecimentos que queiram aderir terão de explicar porquê e ficam sujeitos a monitorização. Quanto ao 1.° Ciclo, fica, para já, excluído da medida, por ser visto como uma "fase crítica" nas aprendizagens da leitura e da escrita, justificou, em julho, Alexandre Homem Cristo, secretário de Estado Adjunto e da Educação.

Questionado pela "Notícias Magazine", o Ministério da Educação, Ciência e Inovação (MECI) reiterou o "compromisso firme com a digitalização" e recordou que está a ser elaborada uma Estratégia para o Digital na Educação, com o propósito de reforçar "as competências digitais dos alunos, para que fiquem mais bem preparados e com as ferramentas adequadas para um mundo em transformação digital". O Ministério ressalva, contudo, que "a digitalização não pode ser implementada de forma acrítica, cabendo às escolas e aos estabelecimentos de ensino, ao serviço das práticas pedagógicas e em prol da melhoria da aprendizagem, discernir de que forma e em que momentos a tecnologia pode ser um potenciador das aprendizagens e do desenvolvimento das crianças e dos jovens".

Equidade, motivação, distração

Mas, afinal, que evidência há em relação a benefícios e eventuais riscos da digitalização do ensino? Uma das possíveis vantagens prende-se com a questão da equidade, na medida em que os programas de distribuição de equipamentos e conectividade, quando bem geridos, podem contribuir para reduzir desigualdades de acesso a recursos de aprendizagem. Há até estudos da OCDE que relacionam o acesso garantido à tecnologia com melhores taxas de conclusão do Secundário em contextos vulneráveis. Mas, como veremos mais à frente, este potencial benefício também pode ser um risco. Para lá disso, há estudos que sustentam que softwares e plataformas bem concebidas permitem um ensino mais individualizado e se traduzem num aumento do envolvimento e da motivação. Há ainda a questão de vivermos num mundo cada vez mais digital.

Angélica Monteiro, docente do departamento de Ciências da Educação da FPCEUP (no Porto) e investigadora do Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE), sediado na mesma instituição, frisa este ponto. "Os estudos têm vindo a mostrar que é fundamental trabalharmos estas questões cedo, desde logo a do desenvolvimento do pensamento computacional, com vista à integração num futuro mercado de trabalho." Lembra ainda que o acesso precoce à tecnologia é uma porta de acesso privilegiada para sensibilizar para questões relacionadas com a desinformação e a propaganda. De resto, a investigadora deixa duas ressalvas: por um lado, entende que uma eventual marcha-atrás nestas matérias, como aparentemente se vai vendo noutros países, tem sempre um quê de "ideológico e político"; por outro, frisa ser fundamental distinguir entre a proibição do telemóvel como elemento de distração e a proibição como um elemento de aprendizagem. "Nesse caso, é um retrocesso e não faz sentido."

Quanto aos riscos, também são múltiplos. Da distração ao uso excessivo, da formação insuficiente de professores às questões da segurança e privacidade, passando, lá está, por um risco de desigualdade digital (se faltarem equipamentos) e pela perda de competências básicas. Ludmila Nunes, investigadora na área da psicologia cognitiva e diretora sénior para o conhecimento científico na American Psychological Association (APA), sendo que as suas opiniões são feitas a título pessoal e não representam as políticas ou posições da APA, sublinha: "O que a investigação mostra, no geral, é que tirar notas à mão parece resultar em melhor aprendizagem, mesmo quando os dispositivos digitais não estão a ser utilizados para outras tarefas. No entanto, o maior problema com o uso de dispositivos digitais é a distração que estes introduzem, por permitirem aos alunos fazerem outras tarefas enquanto estão na aula ou a estudar. Estas distrações desviam a atenção e causam dificuldade em aprender". Em suma, a especialista vinca a existência de "dados suficientes que apoiam uma limitação do uso de dispositivos digitais em sala de aula". Deixa, porém, uma ressalva fundamental: "Na minha opinião, isto não quer dizer que a proibição total seja a melhor solução. A moderação, o uso responsável e a aposta em literacia digital são soluções que permitem aproveitar os benefícios do uso da tecnologia e tentar restringir os seus efeitos negativos."

João Costa, ex-ministro da Educação (durante o terceiro Governo de António Costa), hoje diretor da Agência Europeia para a Educação Inclusiva e presidente do Comité das Políticas Educativas da OCDE, sintetiza a questão. "Hoje a discussão, a nível europeu, gira em torno de dois eixos: por um lado, a importância de dar aos jovens ferramentas de literacia digital, desde logo porque nos deparamos com uma série de questões relacionadas com a desinformação, o radicalismo, a polarização, os incels, etc., e deixar tudo isso fora da escola é prescindir de uma mediação necessária; por outro lado, o facto de haver dados que apontam para fatores de distração relacionados com o mundo digital. O caminho não pode passar nem por diabolizar a tecnologia, nem por a endeusar, mas sim por encontrar os equilíbrios necessários para que as crianças e jovens possam desenvolver competências digitais. E há neste momento algum trabalho em curso, sobretudo ao nível das neurociências, para perceber que equilíbrio é esse."

Domingos Fernandes, presidente do Conselho Nacional da Educação, também se mostra cauteloso. Por um lado, defende, não há como ignorar a digitalização em geral, "seria meter a cabeça na areia como a avestruz". "Depois, no que diz respeito à massificação de manuais digitais, sobretudo nos primeiros anos, temos de ser cautelosos. Quanto ao resto, há uma questão que nos preocupa particularmente, a mim e ao Conselho. É que de pouco serve atirar computadores para cima do colo dos alunos se for apenas para replicar o que já se fazia e não houver uma renovação das perspetivas pedagógicas e de avaliação. O que é necessário é trabalhar esses recursos poderosíssimos numa perspetiva de inovação pedagógica, para pôr as crianças a pensar, para apoiar a formação de grupos de trabalho, para incentivar a autonomia e a criatividade. O grande salto que temos de dar é esse."

As associações representativas de pais e professores também reforçam a questão do equilíbrio. Mariana Carvalho, da Confederação Nacional das Associações de Pais (CONFAP), realça que o papel e a motricidade fina da escrita são "fundamentais" e têm de ser mantidas, mas admite que, do ponto de vista profissional, a preparação para a interação com a tecnologia é cada vez mais premente. Francisco Gonçalves, secretário-geral da FENPROF, reforça que "instrumentos tecnológicos e o "papel e caneta" são instrumentos complementares". E acrescenta: "A questão pedagógica é não só encontrar a justa medida para uns e para outros, como educar para uma utilização saudável dos meios tecnológicos que vão surgindo." Equilíbrio precisa-se.

Ana Tulha