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No "lugar dos pinguins", como lhe chama o operador de vigilância espanhol José, o frio pede por um café quente. A sofisticada aparelhagem do do avião AWAC (Airborne Warning And Control, em português Alerta Aéreo Antecipado) da OTAN, que até ao final do Europeu de Futebol vai vigiar o espaço aéreo português, obriga a que o ar condicionado esteja permanentemente ligado e a temperatura é gélida, apesar de o sol alentejano ainda ir a meio do seu percurso, quando o voo partiu, anteontem, da base aérea de Beja para mais uma missão.
Ao contrário do que acontece nos aviões comerciais, a descolagem no E-3 A, desde a base militar de Beja, é tranquila e depressa as nuvens passam a ser a paisagem dominante. As duas minúsculas janelas com rede permitem o contacto com o exterior. Lá dentro, um imenso "escritório" com vários postos fervilha de informação que é debitada constantemente por uma profusão de aparelhos electrónicos.
De costas voltadas para a tripulação - no lugar reservado para os jornalistas - é difícil perceber como está a correr mais uma missão de vigilância. Umas voltas para enganar a temperatura que teima em descer, a bebida quente nas mãos e o casaco apertado conseguem fazer esquecer os pés gelados.
Ameaça real
De súbito, ao fundo, o movimento e a concentração de tripulantes à volta de John, o "director táctico" que comanda a operação, denuncia que algo de anormal se passa.Quinze minutos depois José explica que foi detectada uma aeronave ultraligeira numa zona de reserva do espaço aéreo, próximo do estádio de Coimbra.
"Um helicóptero da Força Aérea Portuguesa interceptou um aparelho e fê-lo aterrar há apenas 15 minutos. Com a informação recolhida aqui e em terra foi possível cruzar dados", disse José com ar tranquilo. O AWAC, o avião-radar da OTAN conseguiu identificar a posição do aparelho, que foi obrigado a abandonar o local e, depois (ver caixilho), apreendido.
Em terra, e quando as selecções de futebol da Suíça e da França já tinham subido ao relvado do estádio de Coimbra, o ultraligeiro não tinha igualmente passado despercebido. Foi detectado não só pelo radar terrestre, mas também pelo Centro de Comunicações Móveis da Força Aérea estacionado na zona.
O major Gonçalves, do Estado-Maior da FA, revela que houve contacto visual com o aparelho. Mesmo com a divulgação nacional e internacional sobre a reserva de espaço aéreo no perímetro do estádio, o piloto do ultraligeiro decidiu arriscar a viagem. Em minutos, um helicóptero "Alouette III" foi accionado e tentou comunicar via rádio com o aparelho. Face à ausência de resposta, forçou a aterragem do aparelho. Em terra, o piloto prevaricador já tinha as autoridades à espera.
Esta foi a primeira vez, durante o Euro, que foi preciso interceptar um aparelho. Na semana passada, um avião comercial britânico alterou a rota, dirigindo-se para o Porto em vez de Lisboa. Desfeito o equívoco, foi escoltado por um "F16" da Força Aérea até ao Aeroporto de Sá Carneiro.
Vigiar dois jogos em simultâneo é tarefa fácil para o radar do E-3 A, que consegue detectar alvos num raio de 400 quilómetros. O comandante táctico da missão explicou ao JN que os radares terrestres não detectam alvos que circulem a baixa altitude.
A bordo, os 17 tripulantes, divididos em duas equipas (a de voo e a de missão), cumpriam cinco horas de serviço. "Isto não é um exercício, é real e tenho de prestar muita atenção". José maneja com precisão botões, luzes, patilhas que sobem e descem, comunicações de rádio.
Os resultados dos jogos de futebol vão sendo seguidos a par e passo e "Buba", um americano de tamanho considerável, tenta perceber a dinâmica do jogo. "Ele só sabe de basebol", ri-se Jordi, um americano do Texas. Durante cinco horas no ar, o avião da OTAN reforçou o sistema de vigilância português durante os jogos que decorreram segunda-feira em Lisboa e Coimbra. Com o sol fora do horizonte, a descida até terra foi tranquila. Missão cumprida.
"Ele não sabia mesmo que era proibido voar ali"
"Ficamos todos admirados. Ele é todo certinho, introvertido, fechado...", começa Luís Afonso, sobre o amigo (um funcionário judicial residente em Coimbra) que decidiu sobrevoar Coimbra no dia do jogo França/Suíça."Claro, merecia duas chapadas", acrescenta, mas, por outro lado, "ele é distraído nestas coisas, só quer saber da vida dele"...
E foi esta mesma que se complicou, neste dia em que, cansado, "depois do trabalho", pormenoriza, "decidiu subir a um monte, montar o material e voar". E lá foi, descansando a vida até esta se ironizar . De repente, viu o estádio cheio de gente e decidiu que a viagem ficaria por ali. Acontece que, entretanto, apareceu um "helicóptero determinado a persegui-lo".
Cá por terra já Afonso sabia que era o amigo que estava em apuros. "Através de um telefonema soube logo que era ele. Fiquei admirado. Se fosse outro, mas ele...". Mas era ele, o introvertido, que tinha conquistado, por mérito, uma metralhadora apontada. "Fizeram um pouco de show, seguiram-no até ele aterrar e depois estava a GNR em terra à espera..." Como sobreviveu à experiência? Bem, "está preocupado com a justiça e com o material, o paramotor, que foi apreendido". "Todas as economias dele foram para isto", lamenta Afonso, acrescentando que "não é possível registar os paramotores, mas recebem multas".
A legislação é distraída, mas o amigo de Afonso, "já cansado de jornalistas", também. "Ele não sabia, mesmo, que não podia voar"...
