Henrique Canto e Castro, o actor que entendia a representação como "um acto de imaginação com base na vida, nas coisas e na poesia", morreu ontem, aos 74 anos, na sua residência em Almada.
Com uma vida repartida entre o teatro, o cinema e a televisão, o actor ficou popularizado junto do grande público através da participação em séries como "Residencial Tejo" , "Anjo selvagem" ou "João Semana", actualmente em exibição na RTP, mas o seu "talento desmedido", como define o encenador Carlos Avilez, mereceria que não tivesse sido tantas vezes injustiçado. Apesar do inegável prestígio acumulado, raras foram as vezes em que protagonizou papéis principais em palco. "Era um actor extraordinário, com uma sensibilidade humana impressionante", sintetizou o antigo director artístico do Teatro Nacional D. Maria II.
Procura da verdade
Ciente de que "os papéis se fazem de dentro para fora", construiu uma carreira singular que se manteve imune a tendências ou modismos. "Não era aquilo que se pode considerar um actor de escola, mas alguém marcado por factores específicos que transportava e emprestava aos personagens, sempre baseado na verdade e no não-fingimento", adianta João Mário Grilo, cineasta que dirigiu o actor em "Longe da vista" e "451 Forte".
"Perda" foi a palavra mais ouvida a amigos e admiradores que ontem foram confrontados com a morte do actor. De Ruy de Carvalho, que o considerava "um irmão", ao realizador José Fonseca e Costa, todos realçam a "capacidade de comunicação extraordinária" e a "voz poderosa e bem marcada que se destacava em todos os trabalhos que fazia".
Ao longo de quase 60 anos de carreira, Canto e Castro, nascido em Lisboa a 24 de Abril de 1930, trabalhou em 19 companhias e participou em 73 espectáculos de teatro.
Desde a estreia profissional, em 1946, com a peça "A lição do tempo", sob direcção artística do lendário Ribeirinho, contracenou com personalidades como António Silva, João Vilaret, Laura Alves, Eunice Muñoz, Carmen Dolores ou Irene Cruz, entre muitas outras.
O último palco de teatro por onde passou foi o do Politeama, onde integrou, por pouco tempo, o elenco da peça "Rainha do ferro velho", ainda em cena, numa encenação de Filipe La Féria.
Biografia quase pronta
Um ilustre representante do verdadeiro teatro português. A definição pertence à teatróloga Teresa André, para quem a versatilidade constituía uma das principais características de Henrique Canto e Castro. Embora tenha sido no teatro que viveu os principais momentos da carreira, a popularidade só surgiu através da participação em várias séries televisivas. Mas, para a investigadora Teresa André, mais significativo ainda é "o excepcional desempenho em filmes como 'Manhã submersa' e 'Amor de perdição'". Já para Carmen Dolores foi "o seu carácter despretensioso que lhe permitiu tornar-se um dos maiores actores da sua geração."
Em fase adiantada de elaboração encontra-se uma biografia, da autoria da investigadora Inês Almeida, que compila algumas das entrevistas que concedeu ao longo dos anos. O volume será editado, em breve, pela Dom Quixote.
O corpo do actor esteve em câmara ardente ontem à tarde na Basílica da Estrela. O funeral tem lugar hoje, às 17 horas, com destino ao Cemitério do Alto de São João, em Lisboa, onde o actor vai ser cremado.
Durante 60 anos multiplicou personagens em televisão, cinema e teatro Funeral é hoje em Lisboa
a última
entrevista
do actor
Foi há pouco mais de um mês que Henrique Canto e Castro concedeu a sua última entrevista. Já gravemente adoentado, o actor confessou ao "Jornal de Notícias" que a longevidade da carreira se deveu sobretudo "ao amor que, desde os 12 anos, sentia pelo teatro". Avesso a saudosismos, que considerava estéreis e contraproducentes, o actor não poupou elogios à nova geração de profissionais da área da representação. Mas deixou o alerta, para evitar o risco de deslumbramento "O talento trabalha-se, lima-se, rendilha-se".
Activo até ao último momento, Canto e Castro não deixou de lamentar o progressivo definhamento do teatro, porventura a paixão maior de todas. E mesmo que grande parte da popularidade se tenha devido ao 'pequeno ecrã', o conhecido intérprete não teve pejo em considerar que "a televisão acabou com o teatro". Com o 25 de Abril, Canto e Castro, considerou que as artes da representação foram afectadas "Perdeu-se um determinado caminho por onde as coisas aconteciam. Hoje, entristece-me o que vejo acontecer à minha profissão, seja no teatro, no cinema ou na televisão. Ela é bastante menosprezada, sobretudo do ponto de vista qualitativo".
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Depoimentos
Filipe La Féria
Encenador e dramaturgo
Conhecia-o há muitos anos e tinha o privilégio de ser seu amigo. Desde pequeno que me lembro de aplaudi-lo. Foi com bastante sacrifício e profissionalismo que ele participou na peça 'A rainha do ferro velho', já que se encontrava doente".
João Mário Grilo
Cineasta
Com ele, morrem não só todas as personagens que deveria ter feito e não fez, mas também todas as que deveria continuar a fazer. Morre uma espécie de emoção. Desaparece ainda toda uma maneira de estar na vida que eu aprecio imenso. Acima de tudo, via-o como um profissional muito particular, muito especial e um grande actor de cinema".
Irene Cruz
Actriz
É uma grande perda para o teatro, pois era um actor talentosíssimo e um grande colega de trabalho. Tinha muita genica e entregava-se bastante ao que fazia. Nas pausas, tinha sempre uma piada ou uma brincadeira para fazer com os colegas".
Francisco Moita Flores
Argumentista
Estou profundamente chocado com a sua morte. Perdemos um dos nossos melhores actores de sempre".
Alina Vaz
Actriz
Era um grande actor que nunca foi especialmente reconhecido pelo público, apesar de o ser entre os colegas. Todos nós, actores, reconhecíamos o seu talento e profissionalismo".
