"Um círculo para a cara, dois pontos para os olhos, um traço para a boca, um 'U' faz o nariz e já está!". Assim definiu Hergé, certa vez, Tintin. A esta simplicidade gráfica - que o transformou num dos símbolos mais fortes do século XX -, assente num traço límpido, servido por cores planas e luminosas, para o qual foi necessário inventar a designação "linha clara", podemos acrescentar o seu carácter decidido e aventuroso, a defesa de valores como a justiça, a amizade e o combate eterno pelos mais fracos.
O universo Tintin - de longe a mais célebre criação do belga, também autor de Quim e Filipe, e do trio Joana, João e o Macaco Simão - é feito de 23 álbuns e neles reside o essencial de Hergé. Mas, quando hoje passa um século sobre o nascimento do criador belga, há um pormenor de que muitos nunca se terão apercebido são muito poucas as mulheres na vida de Tintin e, quando as há, surgem sempre reduzidas, em todos os aspectos, a uma condição menor.
Um ano a ver BD à lupa
Foi esta ausência feminina, nunca investigada nas seis teses francesas existentes sobre o herói de Hergé, que serviu de base à primeira tese portuguesa sobre Tintin, agora editada em livro "A invisibilidade do género feminino em Tintin - A conspiração do silêncio". O volume, que já estará disponível nas Feiras do Livro de Lisboa e Porto que arrancam esta semana, envolveu num trabalho estóico a sua autora, Ana Bravo, que esquadrinhou milhares de vinhetas.
Após a análise, a conclusão foi a esperada "As mulheres em Tintin estão conformadas a papéis secundarizantes na acção, com ocupações tradicionais e formatadas em traços de caracteres comuns de uma sensibilidade e fragilidade feminina aliadas à arte de atrair problemas".
Mulher estereotipada
Depois de uma dar perspectiva alargada da evolução da BD, Ana Bravo analisa a relação de Hergé com as mulheres - as de papel e as de carne e osso -, de onde se percebe que "se as mulheres lograram adquirir algum protagonismo no seu círculo profissional, constata-se uma intencionalidade de ordem religiosa, social, cultural, ideológica e de público-alvo na invisibilidade das mulheres no seu universo ficcional, assim como uma inusitada incorporação de género em personagens modeladas de animalidade", concretamente da cadela Milu.
Como curiosidade, regista "a tendência para discriminar salarialmente as colaboradoras em 1977, quando o seu secretário se afastou, vítima de uma trombose, e foi substituído pela mulher, Hergé convencionou-lhe um salário 2/3 inferior ao do marido".
Ana Bravo analisou ao pormenor as dezenas de mulheres que Hergé desenhou (n.º de aparições, vestuário, atitudes, falas), quase sempre meros figurantes, e verifica que em dois álbuns ("Tintin no País dos Sovietes" e "Explorando a Lua"), aventuras de temática política e científica, a mulher não entra de todo. E de todas, só Bianca Castafiore, "o rouxinol milanês", se destaca, surgindo em sete dos 23 álbuns, mas apenas como protagonista em "As Jóias de Castafiore", onde, apesar disso, "mais uma vez, Hergé não foi generoso com o universo feminino", pois mesmo "elevando a personagem ao estatuto de protagonista, não logrou fugir ao estereótipo da feminilidade histérica, incorporada numa Castafiore narcísica, obcecada pela imagem e embriagada pelo poder mágico da música, 'leit-motiv' da sua acção".
No reino da amizade viril
Esta ausência no feminino, é para José Abrantes, autor de BD e admirador de Hergé "um dado que denuncia alguma antiguidade do seu universo; hoje em dia não seria admissível uma série não ter personagens femininas com relevância na história".
A ausência é justificada pelo autor em entrevista a Numa Sadoul ("Tintin et moi - Entretiens avec Hergé", Casterman, 2000) "Não é misogenia, mas simplesmente pelo facto de, para mim, as mulheres não terem lugar num mundo como o de Tintin, onde reina uma amizade viril, sem nada de equívoco (?) Se eu introduzisse uma rapariga bonita, que faria ela num mundo onde todos são caricaturas? Gosto demasiado das mulheres para as caricaturar!".
Ana Bravo aceita a justificação "A imagem das mulheres como obstáculo ficcional, ainda que reflectindo a visão ideológica de Hergé, fixada nos valores de uma sociedade patriarcal, tem a legitimidade da liberdade de todo o acto criativo".
Apesar do conforto de um ombro feminino, hoje quase octogenário, Tintin tem envelhecido bem, porque "é muito actual, tanto em termos gráficos como no conteúdo da sua mensagem", afirma Abrantes. Opinião corroborada por Ana Bravo que acrescenta que "o herói mítico não envelhece. É intemporal e exerce um fascínio intacto sobre leitores de várias gerações, devido à profundidade da obra e à inteligência da construção das personagens. Hergé foi um desenhador de génio e um grande contador de histórias".
Como vai fazer Spielberg?
Com ou sem mulheres, Tintin viverá para sempre no mundo inatacável de BD de qualidade conceptual extrema legibilidade, ritmo vivo, correcto doseamento de suspense, humor e acção, desenhos dinâmicos, rigor na construção de cenários e veículos, capacidade de síntese e, até, antecipação científica (mini-submarino, ida à Lua, TV a cores...).
Por todas estas razões, podemos afirmar que estamos próximos da perfeição. Mas, não será isso um problema para o megalómano projecto cinematográfico de adaptação das suas histórias que Steven Spielberg e Peter Jackson têm agora em mãos? Os dois cineastas pretendem produzir e realizar, já a partir de 2008, uma trilogia com novas técnicas de animação em 3D. As histórias e o elenco ainda não foram revelados, não se sabendo também se nos três filmes que aí vêm a mulher irá manter o seu habitual papel de secundaríssima figura.
