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Aparentemente, a expedição do protocolo - a partir de hoje e até 2012 serão gastos no Bairro do Lagarteiro 11 milhões de euros em recuperação habitacional e em dezenas de programas sociais humanitários (ver página seguinte) - tem tudo a ver com aquele mofo "São assim, camadinhas de bolor, parecem bichinhos da seda que descem por aqui abaixo". Casa 42, Entrada 202, Bloco 2, Lagarteiro, Porto. Aqui é a casa de Lucinda e Alberto; aqui cheira àquele cheiro acre dos ácaros, à humidade abafada, ao cheiro do bafum. Há roupa espalhada, empilhada pela sala, há naprons com pó e flores de plástico, a cama desolada na desarrumação do chão. Mas a descalça realidade daquele T3, renda social de 66 euros, não vem sem a ironia do penhor: "A Câmara fez aqui obras há quatro anos, por isso ainda está dentro da garantia de cinco, ou não?".
Pergunta ergue pergunta quantas das 446 casas do Lagarteiro estão nestas desdentadas condições? Pelo menos uma maioria dos primeiros nove blocos construídos em 1973 - a segunda fase, de 77, somou-lhe mais quatro blocos, mais duradoiros -, está urgentemente a necessitar de intervenção.
Aqui é um território onde rapidamente se vai da descrença à delação e de volta à incredulidade, numa imensa mistura de crispações. Lucinda, reforma de inválida "Vão recuperar o quê? Não acredito em nada". Alberto, reforma de inválido: "Há quem pague aqui dois euros de renda por um tipo 4. Vou acreditar no quê?". Um coro dos dois: "Eles mentem muito, mentem muito, e aqui não sabemos de nada".
Eva Nogueira, um piso de betão abaixo, sabe o mesmo também as suas paredes gangrenam; também ela vive naquele mofo. "Obras? Só ontem ouvi falar nas obras, mas aqui ninguém fala com a gente". Tem 66 anos e um carrapito, é uma senhora que manca entre a malga de frutas a fingir e as passadeiras peladas. O agregado é de cinco: ela, o marido com uma trombose silente, a filha toxicodependente, "e ainda mais dois netinhos". A família vive de duas reformas; paga de renda 70 euros.
O desejo de sair dali
Construído de forma segregada e como fragmento, o Bairro do Lagarteiro não parece possuir qualquer coerência morfológica entre os blocos de tijolo e concreto betão, é estilhaçado e desarticulado internamente. Quando chove, os carreiros ficam empapados, o jardim é de capim. Há quanto tempo estão aqueles quatro carros ali confiscados, rebentados, à roda do pátio da esquadra da polícia?
As histórias repetem-se; escapar àquilo é fugir dali. É o que deseja Desirée ("com dois és"), habitante única de um tipo 4, renda de 76 euros, que perdeu marido e a custódia dos dois filhos. Tem cabelo ruivo e neo-romântico e na cara a mesma falta de informação "Vão mesmo recuperar as casas? E por dentro também? Não vai ser já para o meu tempo". Desirée, que fuma a sonhar com aulas de dança, quer largar-se dali no mês que vem. Anda de olho numa casinha que viu ali para lá de Gaia, um T1+1 com 175 euros de renda. "Até tenho água na boca".
"Tenho que ter coragem"
Entre uma miséria escolar reinante (só 6% da população de 1800 mil tem estudos de secundário), de drogas pesadas está aparentemente limpo, o Lagarteiro. "Mas ainda circula muito pólen e chamon", diz um secreto dependente, tóxico morador dali.
O bairro tem barulhos permanentes, cães e bolas que latem, latadas, cacarejos de crianças - a escola EB1 divide os blocos de cima dos blocos de baixo -, vizinhas que falam muito entre as ventanas, a ver de cima, braços postos no parapeito. Venta, faz que chove, não sai dali.
É verdade, dona Armanda, é verdade. Ela tem 83 anos, é a mais antiga habitante do Lagarteiro. É uma doce velhinha, toda dobradinha, a minguar para pequenina, a subir 48 degraus cada vez que ascende a casa. "A minha filha berra comigo, que tenho que ter coragem, louvado seja Deus, que tenho que ir em frente. Eu tenho coragem, até tenho, mas não tenho todos os dias". É verdade, dona Armanda, é verdade. "É muito triste tudo isto, diga lá se não é".