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Escrita criativa ajuda reclusos
a esquecer grades da prisão
Através de "A cor das histórias", sete reclusos do Estabelecimento Prisional Regional de Setúbal (EPRS) sentem-se hoje mais próximos da liberdade e mais iguais aos que estão do lado de fora. "É o nosso momento de evasão", explica Mário, 42 anos, preso preventivo com três filhos e mulher à sua espera quando sair. Só ainda não sabe quando.
O programa, uma iniciativa do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas e da Direcção Geral dos Serviços Prisionais, começou em Fevereiro e acabará em breve.
Miguel Horta, o monitor em Setúbal - que é pintor e escritor de livros infantis - apostou num trabalho de interacção. "Estava preparado para tudo", mas optou por começar com a criação de um acróstico. "Um quê"? os voluntários, entre os 22 e os 44 anos, procuraram de imediato o significado do termo no dicionário da biblioteca, onde as sessões decorrem.
Para começar, cada um escreveu o seu nome na vertical numa folha de papel e os colegas tiveram de formar outras palavras, na horizontal, a partir da primeira letra que sobrava. Mas teria de ser um adjectivo associado ao colega em causa.
"Além da história pessoal de cada um dos reclusos, o método assenta na escrita criativa com base em episódios, lembranças ou sentimentos que tiveram", explicou ao JN, Miguel Horta. A sugestão de tema foi feita e cada participante concebeu-a, de acordo com a sua vontade e estado de espírito. Assim surgiu "Carta a Cristo" de Joaquim Alexandre, "Receita da Amizade" de Mário, "Do Cairo a Alexandria ", o relato de Victor Sereno (ler página seguinte) e o jocoso "Anúncio" de venda do Brasil, do brasileiro Washington.
Ajudou o monitor ter experiência de ensino lúdico com crianças, saber falar crioulo - o segundo idioma na prisão - e não ter querido saber porque estão presos. "Interessa-me saber quem são, não o que fizeram", justificou.
Importante foi também -, nas sessões de hora e meia que não têm periodicidade fixa - a presença da psicóloga clínica da prisão, Susana Almeida, que há sete anos e meio trabalha com reclusos. Primeiro no Montijo, e desde 2005, em Setúbal.
Respeito pela mulher
Com um grupo de jovens reclusos primários - presos pela primeira vez -, Susana fez em anos anteriores dinâmica de grupo, para reforçar laços familiares, o conhecimento e a auto-estima. Os detidos não a vêem como mulher. "Bem, somos uns 300, se estivermos no recreio e passar uma mulher, é óbvio que pode haver olhares menos respeitadores. Com ela, não", garante Mário. A psicóloga diz que no início foi mais difícil, mas que no EPRS nunca foi alvo de qualquer abuso verbal. "Eles respeitam muito a mulher. É a mãe, a esposa ou a filha que vêem", adianta Hermínia Pacheco, directora há 13 anos, que antes do EPRS chefiou os presídios de Beja e Montijo.
O espírito, garante-se no presídio, reflecte-se na hostilidade contra os que cometeram crimes sexuais. Têm de ser isolados porque não são aceites.
Além do jornal trimestral, gostariam que os textos do grupo de Incentivo à Leitura fossem publicados. Quase na íntegra aqui fica um "Oportunidade única para você, homem milionário e empreendedor que ambiciona explorar todo um país para obter grandiosos rendimentos, compre o Brasil! Propriedade possuidora de alvará de exploração indiscriminada, rica em recursos humanos e naturais. Políticos de fácil maneio. Com clima tropical, propício ao turismo todo o ano, onde pode desfrutar de longas, belas e seguras praias , recheadas de exuberantes atributos humanos. Um país em franco desenvolvimento, amigo do ambiente e de população serena e satisfeita".
Cadeia sobrelotada só tem 3% de detidos analfabetos
A maioria dos reclusos do Estabelecimento Prisional Regional de Setúbal (EPRS) - 56% - tem entre 26 e 41 anos e está a cumprir penas de três a cinco anos e até um triénio. Com lotação para 131 detidos, a cadeia está sobrelotada em 200%, com 249 reclusos registados a 31 de Dezembro. Destes, 59% são condenados e 41% estão em prisão preventiva. O tráfico de estupefacientes (54%) encabeça os crimes que mais penas produziu.
Apenas 11% estão em regime aberto, a maioria (74%) é solteira e de nacionalidade portuguesa (69%). Segue-se, em número, a comunidade cabo verdiana (18%).
Quase metade dos detidos (40%) declarou consumir droga à data de entrada no EPRS, mas só há 3% de analfabetos, o que - em comparação com outras cadeias - explica a boa adesão às iniciativas de psicoterapia e desenvolvimento pessoal, que a Direcção Geral dos Serviços Prisionais, tem promovido. Como acontece com o grupo do programa de "Incentivo à Leitura".
No EPRS ficou na memória da directora, as sessões mensais com o jornalista e escritor Fernando Assis Pacheco, no final dos anos 89, em que se liam livros e discutiam-se autores.
O ano passado, a actividade lúdica foi a pintura e durou seis meses. Uma pintora que vive em Setúbal, mas nasceu em Angola, ofereceu-se como voluntária, para orientar os trabalhos dos reclusos e, por sua sugestão, as telas criadas foram expostas durante um mês no museu do Trabalho.