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Liberdade vigiada
de Sartre
Em Junho de 1976, encontrei Sartre, na Piazza San Marco, em Veneza. Era um homem disponível e estabelecemos conversa. Portugal vivia o entusiasmo revolucionário e o português representava objecto de curiosidade. Escolhemos o Café Florian e discorremos sobre o 25 de Abril, a queda do fascismo, a Literatura. Eu ouvia-o a ver como ele era. Pequenino e estrábico, observava-me, também, porque, se a abordagem não custara, Sartre não se abria do pé para a mão.
Simone de Beauvoir, no excelente livro "A cerimónia do adeus" (1981), evocando o companheiro de sempre, morto um anos antes, lembra a viagem que os trouxe, juntos, a Portugal, em Março de 1975. Vale a pena citar esta passagem "Fez uma conferência diante de estudantes cuja fragilidade das respostas o desiludiu. Pelo contrário, teve óptimos contactos com trabalhadores de uma fábrica, em autogestão, dos arredores do Porto. Participou de uma reunião de escritores que se interrogavam, embaraçados, acerca do papel que lhes competia".
Sartre não abandonara o radicalismo político e o desembaraço quanto às obrigações dos intelectuais. Lembrava-me do que afirmara em 1945 "Na literatura comprometida, o compromisso em nenhum caso deve esquecer a literatura, injectando-lhe sangue novo, ao mesmo tempo que servirá a colectividade, proporcionando-lhe a literatura que lhe convém".
É certo que era ambíguo defendia a literatura e a singularidade - liberdade intrínseca - e, simultaneamente, condicionava-a, indicando a obrigação de servir ela a colectividade. Liberdade vigiada, afinal... Mas não me surpreenderia ler, na obra citada, as seguintes palavras de Sartre "Pensei que a acção política deveria constituir um mundo em que a literatura seria livre de se expressar, ao contrário do que entendem os soviéticos. Nunca abordei, politicamente, a questão da literatura, sempre a considerei uma das formas da liberdade". E não me surpreenderia porque, ao longo da nossa conversa, o homem se iria revelando disponível, precisamente o contrário de alguém dogmático - ou um intelectual preocupado em reivindicar o direito à escolha, em se desembaraçar de dogmas. Contraditório? Atravessou época conturbada e difícil - a liberdade implicava forte exigência moral e o exercício significava reconsiderá-la a cada hora. Vivia-se tempo maniqueísta, anquilosador. A liberdade era vigiada - no campo do socialismo real e no campo do fascismo. Praticá-la constituía acto de coragem, sujeito a pagamento.Sartre navegou -tentou sobreviver e salvar o melhor- nesse clima malsão, tendencialmente, asfixiante. Quando se impôs no mundo literário -1938, com o romance "A náusea" -, a figura de André Gide, apóstolo da liberdade ilimitada, da livre iniciativa, pesava muito. Deram-se bem apesar de Sartre escolher outro caminho -a dependência do individual, sempre condicionado pelo contexto, meio, colectividade, o homem "em situação", ou seja, resultado do circunstante. Não por acaso, em 1952, se incompatibilizaria com Albert Camus, certamente mais perto de certas concepções de Gide. A intervenção política de Sartre acelera, nos últimos anos de vida. A criatividade ressente-se. Ou, afinal, a intervenção política do escritor não passa da consequência de impotência criadora? O que eu não esperava - e aconteceu- era ouvi-lo dizer, à despedida, quase em desabafo, acerca da crise literária, à altura já rampante "O Gide é que tinha razão..." E ficou-me, entre outras, essa frase.
MANUEL
POPPE