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"Não peço muito mais que uma televisão, pois a da sala está avariada e agora só tenho uma pequenina na cozinha", segredou Antonieta, 55 anos, ao JN, sentada entre os cerca de 180 potenciais concorrentes de "O preço certo", da RTP1. Antonieta é uma repetente neste programa, em que a ideia é acertar nos preços de vários produtos ao longo de uma hora de emissão. Quem concorre tanto deverá saber o preço de uma depiladora quanto o de um automóvel. Pelo meio, há de tudo, como vassouras eléctricas ou telemóveis. Antonieta já lá tinha estado, mas na altura o programa ainda era apresentado por Jorge Gabriel e chamava-se "O preço certo em euros".
"Não consegui ir longe, pois falhei o preço de uma botas. Custavam 65 euros e disse que custavam 55, e assim houve quem ficasse mais próximo do preço certo", lembrou esta reformada da indústria conserveira, que trouxe um grupo de Peniche para concorrer.
"Beijinho ao Fernando Mendes"
A partir de 2003 o programa passou a ser conduzido por Fernando Mendes, que se tornou uma figura incontornável de "O preço certo". "Adoro ver o Fernando Mendes, queria mesmo ver se lhe dava um beijinho e, já agora, ver se eu também ganho alguma coisa", explicou Raquel, 70 anos, que veio com o grupo de Antonieta, também ela uma reformada das conservas. O programa, recorde-se, várias vezes ultrapassou o milhão de espectadores por programa, ano passado.
O exemplo da verdadeira fã de Fernando Mendes foi dado por Antonieta "A minha sogra, Celeste, de 89 anos, não perde um programa. Uma vez tive que lhe dar um copo com água e açúcar, quando o Fernando Mendes colocou na cabeça umas cuecas que alguém lhe tinha oferecido", lembrou, partilhando sonoras gargalhadas com as restantes mulheres do grupo. "Estava a ver que lhe dava uma coisa, ela ri-se imenso com ele e mesmo o meu marido fica todo irritado quando vê os concorrentes a falhar o preço dos objectos".
Toda a conversa com Antonieta e amigas foi-se desenrolando durante os preparativos de gravação, enquanto a produção do programa ia distribuindo os lugares do estúdio da RTP. Por entre idosos, novos, meias-idades, quase todo o Portugal está representado na assistência. "Mas o Norte é a zona que mais concorre", lembrou um elemento da produtora Fremantle. Nessa tarde, foram gravadas três edições de "O preço certo", usando o mesmo público, que troca de lugar nos intervalos.
Houve quem se apresentasse com um acordeão, ao passo que um grupo envergava, orgulhoso, cachecóis do Sporting. O estúdio foi enchendo e alguns dos concorrentes até tiveram que ficar sentados nas escadas. Um dos técnicos foi instruindo a plateia sobre quando aplaudir ou reagir a certos momentos, mas imperava o riso descoordenado e as bocas a roçar o brejeiro, tudo numa aparente anarquia. "Calma, meus amores", pediu o assistente de realização.
A apoteose
Fomos encontrar Fernando Mendes encostado a uma mesa de matrecos, um dos artigos que iam a concurso. O apresentador parecia meditar, alheio a todo o rebuliço. "Este programa vive muito da capacidade de interagir com o público, o concorrente ajuda muito a animar o programa", contou. Para Fernando Mendes, há um certo toque de "teatro de revista" neste "programa popular, que também chega muito aos mais novos e também aos intelectuais, que eu sei que eles também vêem", referiu, acrescentando que quaisquer "críticas por ser 'popularucho' passam-me ao lado". Fernando Mendes reconheceu que, "após mil e tal programas, está tudo inventado".
Pouco depois, a apoteose Fernando Mendes entra, de camisa branca e suspensórios, e é recebido em gritos e palmas. "O que é que este programa é?", perguntou a certa altura. "Um espectáculo", respondeu o público, em uníssono.
Sorridente, Antonieta voltou a ser chamada, mas de novo as coisas não lhe correram da melhor forma,acabando por não receber qualquer prémio. "Interessa é participar e a minha sogra vai adorar ver--me na televisão", concluiu, com bom espírito.
Os outros concorrentes foram sendo chamados para as provas seguintes, dos quais se destacou Anabela Silva, uma vigilante de 34 anos, de Albergaria-a-Velha, que chegou à etapa final, a do carro, embora não conseguisse acertar nos cerca de 19 mil euros que custava. Relativizando a oportunidade perdida, Anabela resumiu o seu estado de alma "Ao lado do Fernando Mendes uma pessoa fica logo bem-disposta".
"O preço certo" alimenta
planeta dos bem-dispostos
Serviço público?
É um sucesso de audiências e, antecedendo o Telejornal na grelha da RTP1, dá um grande contributo para manter elevado o número de espectadores quando começa o principal notíciário da estação pública. Mas muitos questionam o papel deste programa de entretenimento no âmbito do serviço público de televisão a que a RTP está obrigada contratualmente. Por exemplo, Francisco Rui Cádima, investigador de assuntos dos média, tem insistido há anos na sua tese "'O preço certo' não é serviço público de televisão".
