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Pois cá estou, de modo caseiro e artesanal, recebendo cartas escritas à mão e entregues pelo carteiro (avis-rara em época de choques tecnológicos e realidades virtuais). Vou cultivando as couves galegas da Santa Independência. Mas, confesso, gosto disso. Até porque os que também esgravatam a vidinha nos quintais deles vão lendo estas crónicas e dando-me achegas para a sementeira.
Foi o caso de um leitor do JN que, a propósito da crónica sobre o Carregal, escreveu a dizer, entre outras coisas "Veio-me à memória o escritor Pedro Ivo, que tão bem descreve o ambiente do Porto do século XIX (...). Li-o, na pequena biblioteca com o seu nome, no Jardim da Praça do Marquês! Há tempos, procurei-o nas livrarias, para reler, mas infelizmente não encontrei nenhuma obra. Ficou-me na lembrança o conto 'O Meigo': um pombo que serve de correio a um par de namorados (...). Outro conto era a história de um jardim, cujo verdadeiro proprietário era um estudante que ocupava as águas furtadas do prédio, com postigos abertos ao canto da passarada. (...) No romance 'O Selo da Roda', sobre o drama dos filhos de pais incógnitos, creio que Pedro Ivo situa uma cena na portuense Rua do Bonjardim... Mas, essa leitura, foi há mais de 40 anos! Quem sabe não fará uma crónica do esquecido Pedro Ivo (...), e que me seria tão aprazível'.
Tem o leitor toda a razão. Um véu de esquecimento caiu sobre o notabilíssimo contista Pedro Ivo. Foi um notabilíssimo contador de histórias, cujo verdadeiro nome era Carlos Lopes. Nasceu no Porto em 1849 e aqui faleceu em 1906. Estudou na Alemanha, viveu no Brasil e dedicou-se à carreira comercial. Foi director bancário e presidente da Real Companhia dos Caminhos de Ferro. Estreou-se nas letras, em 1874, com o livro "Contos", a que se seguiram o romance "O Selo da Roda" (1876), e "Serões de Inverno" (1880), porventura a obra em que seu talento de narrador de histórias é mais saliente. Postumamente foi publicado "O Limbo de Pedro Ivo", contendo inéditos e a biografia do autor. Relativamente à obra de referência ("Serões de Inverno", uma delícia literária para descansar o espírito do que dizem os telejornais), basta consultar o índice para nos apercebermos do género de escrita ("narrativas singelas de coisas simples", conforme dela escreveu Alexandre Herculano) e das preferências do autor pelos assuntos comezinhos do quotidiano da gente comum .
Pedro Ivo era um inventor das histórias que as pessoas gostavam de ler, porque nelas se reviam, identificando-se com os personagens. Isto explica o relativo sucesso de que, na sua época, gozou nesta cidade. Histórias como, por exemplo, a do entendimento amoroso provocado pela obra-prima de entalhador patente numa gaiola de canário (no conto "Se não fosse o canário"). E, noutro episódio, a simples fórmula "Não pode ser", para afastar um pedinte, suscita a moralidade do desfecho, comprovando (tal como "O Homem Mal Encarado!", e "A Dona da Orelha") a habilidade do escritor para tirar partido de frases correntes e banais, encetando a intriga e a acção das narrações.
E, além do mais, estes deliciosos "Serões de Inverno" revelam um conhecimento profundo tanto do ambiente físico e da topografia urbana, como dos costumes do Burgo, cujos lugares aparecem descritos e localizados nos cenários e meandros das histórias. Diga-se que, contrariamente aos humanos actuais, a cidade teve para com um dos filhos (que nunca omitiu - como certos autores - as referências tripeiras para passarem por cosmopolitas e agradarem à crítica da capital e, pelo contrário, as assumiu e retratou devotadamente) a cidade teve, dizia, gestos bastantes de gratidão. Assim, dedicou-lhe uma rua, em Paranhos, e homenageou-o como patrono da simpática, útil, bela e delicada Biblioteca Infantil do Jardim do Marquês, desactivada ainda antes do urbanismo arboricida que por lá passou.