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"Há três coisas que me custam muito nesta vida: fazer o que faço, estar longe do meu filho e não poder escrever", diz Ana (nome fictício), de 50 anos, enquanto relata, entre lágrimas, momentos de má memória que a levaram a prostituir-se em Braga. Agora vive a solidão, o medo das redes de tráfico, dos proxenetas, da Polícia. Medo da própria sombra. "Qualquer ajuda seria bem- vinda", desabafa, instada a comentar a crítica do líder da Associação Famílias de Braga, que aponta para a ausência de serviços no distrito para darem apoio a estas mulheres.
"Desengane-se quem pensa que as pessoas se prostituem por opção", resumiu, implacável, a responsável da instituição "O Ninho", Inês Fontinha, que tem trabalhado na reinserção e ajuda às prostitutas na Grande Lisboa. "No Norte, à parte dos projectos ligados à prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, não há nenhum suporte psicológico ou social específico para esta área", refere.
A região minhota, enquanto porta de entrada junto à fronteira com Espanha, concentra inúmeros bares de alterne. Paralelamente, vai aumentando a prostituição em apartamentos, bordéis e na rua. "E se alguma destas mulheres quiser mudar o rumo da sua vida?", questiona o responsável pela Associação Famílias, Carlos Gomes.
Ana quer. Chora copiosamente ao recordar a antiga profissão de redactora num jornal de Mato Grosso, Brasil, onde chegou a ser perseguida por escrever a favor dos Sem Terra. Um dia arriscou Portugal, deixando para trás o ex- marido e um filho. Empregou-se numa empresa em Lisboa, para pouco depois sair por ter sido "explorada", rumando a Braga para trabalhar num restaurante. "Um dia tive de ser operada e no, pós-operatório, a patroa mandou-me uma carta a despedir-me. Nessa mesma altura, o meu companheiro suicidou-se. Fiquei sozinha, doente. Tentei abrir uma casa de petiscos, mas a Câmara de Braga não me concedeu a licença". Há um ano, começou a prostituir-se para pagar a faculdade do filho, no Brasil. Em todas as esquinas, passou a haver um inimigo. "Ninguém imagina. Estas meninas...usam drogas. Os chulos... Há muitas com carências. Não se podem queixar a ninguém, porque têm medo", desabafa. Segundo diz, os proxenetas são, na sua grande maioria, portugueses. Uma teia de "terror" que a leva a concluir: "Se houvesse um espaço de ajuda, nós só íamos se não houvesse Polícia, nem discriminação".
Segundo Inês Fontinha, a prostituição em apartamentos encerra histórias de "violência extrema". Às vezes até mais do que na rua. Num cenário global, onde o tráfico de mulheres aumenta "de forma preocupante", a responsável apela para uma tomada de atitude. Mas foi da Associação Famílias que surgiu o primeiro passo para a sensibilização em Braga.
Longe vão os tempos em que o Instituto Monsenhor Airosa, em Braga, acolhia mulheres prostitutas que queriam mudar de vida. Fê-lo durante várias décadas, com o nome de "Colégio da Regeneração". Actualmente a responsável, Celeste Vaz, recusa que o espaço seja conotado com essa época, porque a instituição passou a servir jovens e meninas em risco, que, na grande maioria, não têm nada a ver com esta realidade. Um pouco por todo o distrito, programas esporádicos e vinculados a outros de maior dimensão, surgem para dar apoio nas ruas, na distribuição de preservativos e seringas. O projecto "Auto- Estima" actua nesta área com equipas que circulam por Braga e Guimarães. Tudo piora no que toca à prostituição em espaços fechados, onde há uma predominância de estrangeiras. Uma situação a que se tem fechado os olhos, segundo crê Inês Fontinha. Da Câmara de Braga, o vereador da Acção Social reconhece o vazio: "Sem dúvida que seria bom que se começasse a olhar para esse problema", revelou Jorge Matos. A Associação de Apoio à Vítima assume que não fecha a porta a mulheres que se prostituem, mas os centros de acolhimento estão quase sempre cheios com vítimas de violência conjugal. Admite-se que não seria fácil fazer a conciliação entre os dois tipos de casos.
Projectos existentes são dispersos e pontuais
Números
30
mil mulheres prostituem-se em Portugal em casas, bordéis ou apartamentos pagos por agências clandestinas. Metade são brasileiras.
1000
bares de alterne conhecidos em todo o país, muitos deles concentrados em zonas de fronteira com Espanha, por onde entram muitos imigrantes.
200
prostitutas foram inquiridas nos distritos de Braga, Viana, Vila Real e Bragança, para uma investigação da UM e da UTAD.
Realidade nas regiões de fronteira
Empresários pela legalização dos bares
As universidades do Minho (UM) e Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD) estão já a tratar os dados de um estudo feito a partir de inquéritos a 200 prostitutas que entraram no país através das fronteiras nortenhas. "Prostituição feminina em zonas transfronteiriças no Norte de Portugal" foi o nome dado à investigação, que pretende analisar o percurso profissional e pessoal destas mulheres até ao início da prostituição. De acordo com o sociólogo da UM, Carlos Silva, co- responsável do projecto, liderado por uma professora da UTAD, uma multiplicidade de factores foi tida em conta para a elaboração dos questionários. As entrevistadas responderam a perguntas sobre as origens sociais, profissão dos pais, violência doméstica no seio familiar ou as primeiras experiências sexuais. "Não há qualquer relação fixa entre a classe de que provêm e a prostituição, embora seja um factor determinante", revela o professor. Também não é seguro pensar que estas jovens tiveram um início de actividade sexual traumatizante. "Muitas até têm muito boas recordações", explica. Dado mais do que apurado é o facto de a grande maioria das inquiridas serem sul- americanas. "Vêm do Brasil, e não só, até Espanha e depois entram pelas fronteiras de autocarro", acrescenta, revelando ainda que o medo de serem descobertas pelos familiares que ficaram nos países de origem é comum a todas. As declarações das mulheres contactadas pelo JN ilustram esta realidade. Ana, que já tinha alcançado algum prestígio social na sua terra, esconde do filho e dos amigos a sua profissão. "Pensam que sou cabeleireira", conta. De igual forma, Soraia (nome alterado), uma brasileira de 22 anos, confessa que o seu maior medo é que os pais, a quem manda dinheiro, descubram que ela se transformou numa mulher da vida. Este receio encerra o cerco da solidão. Talvez por isso, Soraia passe os dias inteiros em casa. Quando não está a atender, está sozinha. "Não quero ter amigas. Trabalhei num clube de prostituição quando cheguei a Braga e só tive desilusões". Sem ninguém para desabafar, recorreu a um psicólogo. "Tornei-me agressiva e inquieta. Fui agredida várias vezes dentro do meu apartamento. Chamar a Polícia não resolveu nada", especifica. "Se me sinto só? Muito. Mas tenho que aguentar". De acordo com Carlos Silva, muitas mulheres assumiram querer sair da actividade. Contudo, as baixas qualificações e os salários reduzidos oferecidos colocam entraves a esse passo. "É um mundo opaco, difícil", descreve o sociólogo.
Se há sempre dois lados distintos numa mesma moeda, a intenção de alguns empresários do distrito de Braga de criar uma associação de bares de alterne, seria o perfeito oposto do que defende quem trabalha no apoio às prostitutas. Se estes últimos pretendem devolver-lhes a auto- estima e apontar alternativas, os segundos querem que cada mulher que se prostitui exerça a profissão com as devidas condições. A ideia da constituição de uma estrutura associativa surgiu das dificuldades do quotidiano, quer nas questões ligadas à legalização das mulheres, como na actuação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e GNR, obrigados por lei a encerrar espaços onde é detectada a prática de lenocínio. O negócio de alguns ficam arruinados, mas outros vão emergindo por todo o distrito. Em suma: resolve-se um problema, mas não se aponta a solução global. Este grupo de empresários chegou, por isso, a reunir para criar um bloco de força com o intuito de pedir ao Estado a regulamentação da prostituição em bares. Segundo disse na ocasião o proprietário da casa de alterne que liderava este movimento espontâneo, se assim fosse ,"as mulheres passavam a descontar para a Segurança Social e Finanças" e "o Estado ganharia com isso". Por outro lado, as condições de higiene passariam a ser feitas como na época de Salazar, durante a qual as prostitutas passavam pelo olho clínico de uma inspecção de saúde, a fim de lhes ser detectado qualquer tipo de doença. Críticos da prática em apartamentos e vivendas (locais que funcionam como pequenas empresas que não pagam IRS ou IRC), estes contestatários, que se dizem alvo de perseguições por parte das entidades fiscalizadoras, queriam dar segurança e higiene às suas trabalhadoras. E se os bares estão legais em tudo, só faltaria mesmo a legalização da prostituição ou, pelo menos, a permissão de funcionamento, frisaram na altura. O grupo, de forma quase secreta, chegou a encetar contactos com outros empresários do Norte, ateando um rastilho que pretendia chegar a todo o país e mobilizar muita gente para esta luta. Um advogado foi depois contratado para estudar a viabilidade da associação, mas não se sabe o rumo que o processo tomou. Isto porque o JN tentou insistentemente contactar o porta- voz do movimento, mas o telemóvel encontra-se desligado há vários dias.