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Por Ana Rute Peixinho e Cristina Fernandes Ferreira
Lisboa, 20 Abr (Lusa) - Para uns significa mais liberdade de horários e melhores rendimentos, mas para muitos outros o trabalho a recibos verdes representa uma condenação à insegurança, falta de direitos a férias e a baixas por doença.
Apesar de criados para profissões liberais, os recibos verdes encontram-se hoje em todos os sectores de actividade e são usados por centenas de milhar de pessoas em todo o país, integrando os mais de um milhão de trabalhadores com vínculo precário (contratos a prazo, trabalho temporário e recibos verdes).
O combate à precariedade tem sido reivindicado pelas centrais sindicais e o ministro do Trabalho e da Solidariedade Social, Vieira da Silva, já prometeu que a revisão do Código do Trabalho, que se avizinha, dará resposta a esta questão.
Maria (nome fictício) tem 31 anos e exerce arquitectura. Há 11 anos que diariamente pica o ponto no atelier onde trabalha em Lisboa. É apenas um dos milhares de portugueses (não há números oficiais) que trabalham a "falsos recibos verdes".
Cumpre sete horas diárias de trabalho, obedece a um superior hierárquico e tem todas as obrigações inerentes a um trabalho por conta de outrem.
Mas não faz parte dos quadros da empresa, tal como mais de uma dezena de colegas seus.
"O trabalho a recibos verdes é uma situação que não me agrada nada. O problema é que há muito desemprego ", disse à agência Lusa esta arquitecta que pediu para não ser identificada.
Ao longo de mais de uma década, Maria e os seus colegas têm tentado inverter esta situação laboral, mas a remuneração proposta para a passagem aos quadros representa cerca de um terço dos 1.600 euros brutos que ganha actualmente.
Destes, Maria paga 160 euros para a Segurança Social, 20 por cento de retenção na fonte de IRS, IVA e o seguro profissional.
Ainda assim, considera-se uma "excepção" por receber 14 meses de ordenado e ter direito a férias pagas.
Até hoje, o nascimento do filho foi a situação mais complicada que teve de ultrapassar no trabalho: "Cheguei a acordo com o atelier para ficar três meses em casa. Durante esse tempo fui sempre pressionada para trabalhar em casa e no final recebi 500 euros por esses 90 dias".
Em véspera dos sindicatos, Governo e patronato discutirem o tema em sede de concertação social, Cristina Andrade, fundadora do Grupo "Fartos Destes Recibos Verdes" (FERVE), lamenta que as centenas de milhar de trabalhadores a "falsos recibos verdes" não estejam representados nestas reuniões.
Criado há um ano, este grupo está satisfeito por ter conseguido destacar a problemática dos falsos recibos verdes dentro da precariedade laboral.
O FERVE espera que da concertação social saiam medidas reais para combater a proliferação destes casos.
"Não basta dizer que se quer criminalizar as empresas que recorrem aos falsos recibos verdes" disse Cristina Andrade.
Muitas vezes é o próprio Estado a acolher este tipo de situações precárias. Numa interpelação no Parlamento no início do mês, o Bloco de Esquerda estimou que só na administração pública haja 117 mil recibos verdes.
É o caso de Miguel (nome fictício), que trabalha no Instituto de Financiamento de Agricultura e Pescas (IFAP) a recibo verde, apesar de ter "um contrato de prestação de serviços" que estabelece a sua remuneração mensal.
"Ainda tenho um horário de trabalho fixo, tenho superiores hierárquicos e as entradas e saídas são controladas pelos seguranças do edifício. É uma situação igual à de quem está nos quadros do instituto, mas sem receber 13º e 14º mês e sem saber o dia de amanhã", relata.
O actual vínculo de trabalho dura há quatro anos, mas desde 1998 que Miguel esteve sempre ligado ao instituto (antigo INGA). Cansados de tanta instabilidade, Miguel e alguns colegas já puseram o caso nas mãos de advogados.
Se conseguisse atingir a estabilidade no emprego, este engenheiro de formação admite que a sua vida teria grandes mudanças: "a primeira coisa que fazia era ter outro filho".
Para a socióloga especialista em questões de trabalho Nádia Nogueira Simões, o uso indevido de recibos "não deveria acontecer em organismos do Estado".
"Este uso indevido tem a ver com diversos factores, nomeadamente com a tentativa das empresas de minimizar encargos fixos e responsabilidades com os trabalhadores", comentou à Lusa a especialista.
Segundo a investigadora do ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), à margem dos falsos recibos verdes há quem seja empurrado para este tipo de vínculo laboral por falta de alternativas.
"Há profissionais que optam pelos recibos verdes, em situação perfeitamente legal, porque não encontram outra opção no mercado de trabalho ou porque o que lhes é oferecido não corresponde ao que pretendem", explicou.
Nesta situação desde o início da carreira profissional está Margarida Clemente, uma psicóloga de 30 anos que não hesitaria em trocar a sua posição pela estabilidade nos quadros de uma instituição.
Contudo está consciente de que na sua profissão "é muito difícil não viver a recibos verdes", reconhecendo que pode ter a vantagem de permitir trabalhar em vários locais, aumentando os rendimentos.
Também à procura de um contrato fixo de trabalho há cinco anos anda Sandra Saraiva, 34 anos professora de inglês.
Nunca conseguiu colocação como professora numa escola pública e tem de viver das acções de formação que faz e das aulas de enriquecimento curricular que dá no ensino básico.
"Nos meses melhores chego a ganhar mais de mil euros. Nos mais fracos não chego aos 400. Em Julho, Agosto e Setembro praticamente não ganho nada", disse, lembrando que se não fosse a situação estável do marido teriam de "parar de viver" nos meses de Verão.
Longe desta instabilidade vivem alguns profissionais liberais que encontram nos recibos verdes uma independência desejava por quase 70 por cento dos portugueses.
"Dos países da União Europeia, os portugueses são os que mais dizem que desejam ser trabalhadores por conta própria, na ordem dos 70 por cento", afirma a socióloga Nádia Nogueira Simões.
Nos países desenvolvidos, o rendimento médio de um trabalhador independente é superior ao dos funcionários por conta de outrem, embora esta estimativa não tenha apenas em conta os profissionais a recibo verde, mas também os empresários em nome individual.
A melhor organização do tempo e das tarefas e a decisão de quanto tempo e onde se trabalha são vantagens deste tipo de vínculo apontadas por Nádia Nogueira Simões.
Lourenço Cordeiro, um arquitecto de 26 anos, vê os recibos verdes como "uma óptima forma para se contornar a rigidez da lei laboral".
"Em vez da protecção dada pela legislação laboral tenho uma responsabilidade acrescida que nasce da liberdade que me é dada. Trabalhar mal ao abrigo da protecção laboral para mim não é opção", comenta à Lusa este jovem arquitecto.
Consciente de que o seu caso "não é o exemplo típico", Lourenço assegura que gosta de não ter horários, de tirar férias quando lhe apetece e de definir regras do seu próprio trabalho.
"Tenho liberdade total. Se amanhã me apetecer ir para a praia, vou. Não procuro alterar a minha situação de forma nenhuma, até porque não valorizo a estabilidade. Sinto-me realmente um profissional liberal e estou bem com isso", acrescenta.
Embora plenamente satisfeito com a sua situação, Lourenço Cordeiro mostra-se solidário com os casos de "falsos recibos verdes", afirmando compreender a frustração de quem passa anos na insegurança sujeito a cumprir as obrigações de um contrato que não tem.
Lusa/fim
