A coleção Treger Saint Silvestre em depósito no Centro de Arte Oliva é mais uma coleção privada em solo português, em geografia descentralizada e ao alcance de todos.
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Até 5 de março, no Centro de Arte Oliva, em São João da Madeira, está patente "EUREKA!", exposição com obras da coleção Treger Saint Silvestre que se encontra em depósito naquele local. Enquadra-se, esta coleção, no que se denomina e define como Arte Bruta e interessa, por isso, compreender a génese do conceito.
A obra de Jean Dubuffet (1901-1985), tanto pela produção plástica como pelos contributos teóricos, atravessa o século XX deixando uma marca indelével. Em 1945 cria o conceito de arte bruta tentando enquadrar a produção de criadores que se encontravam fora dos circuitos oficiais da arte, não influenciados por qualquer estilo ou escola e autodidatas. Dubuffet encontrou nos hospitais psiquiátricos e nos autodidatas isolados, o que considerava ser a mais pura forma de arte. O suíço Adolf Wölfli (1864-1930), que viveu num asilo de alienados durante quase toda a sua vida, é para Dubuffet o símbolo máximo da arte bruta. Em 1948 é criada a Companhia de Arte Bruta com o objetivo de constituir uma coleção de obras de arte e em 1976 fundado, em Lausane, na Suíça, o museu Collection de L'Art Brut.
Em 1961, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque inaugurou uma importante exposição intitulada "The art of assemblage", na referência ao termo francês introduzido em 1953, também por Jean Dubuffet e que se referia à colagem recorrendo a objetos tridimensionais. A assemblage foi importante pois, não forneceu apenas os meios para fazer uma transição do expressionismo abstrato para as preocupações, aparentemente muito diferentes, da pop art, mas também encerrou uma revisão radical dos formatos em que as artes visuais poderiam operar.
Em muita da produção enquadrada na arte bruta vemos recurso à assemblage, quase recuando ao espírito surrealista do automatismo psíquico e da associação livre das imagens e objetos. A dialética surrealista, não obstante o seu manifesto ser de 1924, marca o tempo do pós II Guerra Mundial, como afirmação das possibilidades do sonho e contrariando o neorrealismo politizado.
Neste sentido, é difícil hoje, à luz da história, pensarmos a arte bruta como um movimento externo aos do seu tempo. O que me parece ser o seu elemento diferenciador, não obstante as plasticidades obtidas, é a natureza doente e autodidata dos seus criadores, funcionando o processo criativo como terapia, catarse ou comunicação do que a razão não permite.
António Saint Silvestre nasceu em Moçambique e é escultor. Richard Treger nasceu no Zimbabué e é pianista. Na década de 1980, motivados pelos interesses despertados pelo continente africano, pelo misticismo, pelo primitivo e por tudo o que é manifestação da cultura popular, iniciaram uma coleção que procuraram enquadrar na dita arte bruta, expandindo-a para uma representatividade que vai para lá dos tradicionais "centros da arte bruta" da Europa Ocidental e América do Norte.
Há obras oriundas de África, Ásia, Europa de Leste, Central e do Sul e América Latina Central, com uma grande variedade de técnicas e materiais, que vão da pintura ao desenho, passando pela escultura, cerâmica, tapeçaria, fotografia, mecanismos elétricos, objetos recuperados e materiais atípicos como matérias orgânicas.
A visão que esta coleção nos dá da arte bruta está para lá da definida por Dubuffet, propondo que se amplie o conceito ao que mais facilmente enquadraríamos no artesanato ou nos objetos produzidos para a ritualização de práticas ancestrais. Em ambos os casos, haverá, por isso, uma consciência na esfera da produção do objeto que é diferente da pureza proposta pelo francês.
É, por isso, ambicioso o propósito da coleção Treger Saint Silvestre, como é interessante o facto de, regra geral, serem os próprios colecionadores a assinarem os projetos de curadoria para as exposições da coleção no Centro de Arte Oliva. Merece-nos, todavia, atenção a presença de mais esta coleção privada em solo português, em geografia descentralizada e ao alcance de todos.
