
Cartoons e tiras de BD de autores nacionais saltam das redes sociais para livros. Criativos falam com o JN sobre a função do humor durante a covid 19.
Tema incontornável dos últimos dois anos, a pandemia ditada pela covid-19 revelou-se fonte de inspiração para a abordagem humorística de vários autores nacionais.
Nascidos nas redes sociais, esses cartoons e bandas desenhadas serviram de distração em tempos complicados. O seu sucesso justificou a compilação numa mão cheia de livros, com comentário político e social ou um retrato mordaz ou hiperbolizado de momentos do quotidiano.
Como afirma Pedro Carvalho, desenhador dos "Quarentugas", "o humor e a ironia são uma excelente ferramenta para abordar temas sensíveis. No caso da pandemia, foi um escape à realidade e pessimismo que estávamos a passar".
André Oliveira, o seu argumentista, complementa: "Uma perspetiva humorística sobre os assuntos que nos afligem é essencial". Já Zé Pestana, criador de Os Grisalhos, protagonistas de "Gente conFINAda é outra coisa", vinca que "tendo a pandemia condicionado o nosso quotidiano, alterado o padrão das interações sociais e monopolizado as atenções, não poderia deixar de escapar ao olhar crítico do humor".
O humor, defende Luís Louro, autor de "Os Covidiotas", cujo segundo álbum sairá neste trimestre, "é um sinal de inteligência e sanidade mental". E reforça: "A forma como as pessoas se comportaram em determinadas situações só podia ser abordada desta forma". Já Leonardo Cruz, argumentista dos "Quarentoons - Uma agenda de um ano que já passou ", remata: "O que vivemos no início de 2020 era tão avassalador que eu e a Natacha (desenhadora da tira) só conseguimos lidar através de piadas e desenhos."
Limites para o humor
Mas até onde se pode ir o humor num tema tão sensível como o da pandemia? André Oliveira defende que "por muito que a covid provoque tragédias, temos o direito de gozar com o vírus. Quanto mais não seja, como um modo de reagir e de chegar a qualquer tipo de vitória sobre o mesmo."
Luís Louro pensa que "se pode e deve brincar com as situações, desde que se mantenha a elegância. Quando se passa essa linha, passa a ser mau gosto e humor grosseiro". E Leonardo Cruz ressalva: "Tivemos cuidado para não sermos cínicos nem moralistas. O objetivo foi sempre o de (tentar) ter piada".
E continua: "Tivemos sorte, porque fomos muito ajudados nesse desígnio por personagens reais ao mais alto nível de decisão de (alguns) Estados. Umas porque são completamente loucas, outras porque estavam completamente perdidas, algumas porque são loucas e estavam perdidas".
Nesses sentido, Trump, Boris Johnson ou Bolsonaro são presença recorrente nestes livros, bem como situações como o açambarcamento de papel higiénico, os passeios com os cães alheios ou as incontornáveis máscaras. Felizmente, provoca Pedro Carvalho, não foi preciso chegar "a casos de canibalismo ou cultos bizarros", numa alusão à vertente mais surreal dos "Quarentugas".
Mas tudo isto não evitou "alguma incompreensão" aqui e ali, até por parte de "amigos", confessa Nuno Saraiva no prefácio do seu "Diário de uma Quarentena em Risco". Foram exceções, uma vez que, segundo Louro, "a reação das pessoas tem sido bastante positiva, sendo que, neste tema, a palavra "positiva" não será a mais amada". Mesmo quando, diz Zé Pestana, não se conhecem os leitores. "Os leitores são como os gambozinos: consta que existem, mas não se deixam ver".
Finalmente, como muitos dos remédios e mezinhas abordados, o humor também não serve de vacina: já com o fim anunciado do seu diário, Nuno Saraiva foi "apanhado pela covid-19".
