
"Os artistas nunca foram pessoas estimáveis na sua época"
José Poiares
Autor de "Beat", livro recentemente distinguido com o Prémio Internacional César Vallejo, o escritor Luís Filipe Sarmento defende que a poesia "é um ato político, um megafone da liberdade de pensamento" e lamenta a falta de atenção generalizada a este género literário.
Na derradeira parte da entrevista concedida ao "Jornal de Notícias", Luís Filipe Sarmento aplaude a forma como as novas gerações estão "a desafiar os valores obsoletos das sociedades ocidentais", distanciando-se ainda da visão unicamente negativa que muitos associam à revolução digital. "É um cardápio ilustrado da condição humana. Para o bem e para o mal", aponta.
Convicto de que o movimento beat foi "a última grande revolução na história da literatura", revela que o seu próximo livro, "Commedia", a sair em março, irá debruçar-se sobre o choque geracional, denunciando os "valores burgueses que as sociedades ocidentais defendem".
Tem poemas e livros publicados em diferentes paragens, muitas das quais longínquas. Até que ponto essas diferentes origens dos recetores, ou seja, leitores, transformam a leitura do que escreveu?
A linguagem aponta sempre, como sublinhou Eduardo Prado Coelho na introdução ao "Prazer do Texto", de Roland Barthes, para o reino da liberdade. A liberdade de escrever, enquanto escritor, é também a liberdade de seduzir o leitor esteja ele onde estiver. A hipotética leitura transformadora de um texto parte sempre da aproximação ao texto, o que advém daí noutras latitudes é, na maioria das vezes, um mistério. O que poderá surpreender é a diferença, o que lhe é inerente como inesperado, segundo o jogo de cada lugar, e só isso poderá provocar prazer ou repulsa, haja ou não transformação na leitura de recetores de outras paragens. Estaremos sempre no reino da liberdade.
Concorda com Eugénio de Andrade quando escreveu que "a poesia é a mais elevada expressão do génio literário português"?
Como concordaria com quem afirmasse que o romance também o seria ou o ensaio ou a crónica ou o conto. Não sou adepto dessa categorização ou hierarquização do género literário. Se a poesia fosse entendida por todos como a mais elevada expressão do génio literário português ela teria sem dificuldade o nobre espaço das livrarias que a sua condição mereceria. E, como sabe, não tem. E não tem porque não tem valor comercial. E não tem valor comercial porque não desperta no leitor esse interesse pela «mais elevada expressão do génio literário português». Hoje, as grandes potências editoriais não dedicam nem espaço nem tempo à promoção da leitura de poesia. Esse trabalho é feito com coragem por pequenas e médias editoras. E encontram muitas dificuldades para expor a sua produção nos pontos de venda. Nem somos um país de poetas nem somos um país que consuma, como ato cultural, livros de poesia. O que se depara aos poetas e aos editores de poesia é um trabalho árduo de resistência. Se associarmos isto ao confronto de umbigos temos a tempestade perfeita para a catástrofe da língua. Seria a elevada expressão do génio literário se fosse entendida como tal. E não é.
A poesia tem natural preponderância na sua escrita, mas, entre os livros que publicou, encontramos também ficção ou ensaio, por exemplo. Com tantos livros publicados, faz sentido falarmos numa obra una ou considera-se um autor múltiplo?
Serei, talvez, um escritor híbrido. Este edifício que ando a construir há quase cinquenta anos é composto por salas todas elas diferentes, mas onde se pode reconhecer o mesmo sangue. É uma obra na sua multiplicidade que se vai regenerando em busca não de novos horizontes mas de um espaço sem fronteiras. Neste sentido, comecei a fazer coincidir vários géneros no mesmo espaço aberto à experiência. O Barthes dizia que «o texto que escrevo tem de me dar a prova de que me deseja». E esse desejo só me estimula na rutura. O pomposo não me interessa porque faz parte de uma pose que, em minha opinião, está em oposição com aquilo que eu entendo que é a criação literária. Essa obra de que fala nem sequer é um puzzle, antes prefigurações das condições de possibilidade de experiências, ou seja, de novas exposições ao perigo. Não me interessa partir de modelos, mas lançar-me na viagem desassossegada e sem termo, isto é, sem fronteira, da língua e da linguagem. E por vezes encontro no lugar-comum o alçapão cinematográfico de imagens radicais. E tudo isto reside nas minhas veias, faz parte integrante do que fui, do que sou, do que serei. E nesse futuro que me alimenta só a liberdade da minha linguagem poderá acompanhar-me, sobressaltando-me.
Não falta quem atribua ao digital, e às redes sociais mais concretamente, grande parte dos problemas de hoje, seja a solidão ou a intolerância. Trata-se de uma teoria que, como já fez questão de expressar noutras ocasiões, não partilha de todo. Porquê?
Porque é, desde logo, um espaço de liberdade. E ainda que não tenha sido pensado como tal configurou-se como um espaço novo da liberdade, não como um novo espaço da liberdade. E este espaço novo não replicou o anterior espaço da liberdade quotidiana. Abriu zonas inexploradas de comunicação onde se elevou a um expoente desconhecido essa nova prática da liberdade democrática. E isto assustou os poderes que o combatem através de armas obsoletas como a depreciação e a calúnia. As distintas vozes fizeram-se ouvir. Todas. É um cardápio ilustrado da condição humana. Para o bem e para o mal. Cujo limite só se poderia antever se nos fechassem nas grades perversas da ditadura. É um espaço sem limites que nos dá a liberdade de escolher. Ora os poderes abominam que as pessoas tenham essa possibilidade de escolher porque a escolha em liberdade retira-lhes o controlo e a manipulação do outro. Donde tentam, através das mesmas ferramentas, adulterar a ideia de verdade.
Para si, não há mesmo "poética sem política", como já foi escrito?
Não, para mim não há mesmo poética sem política. Porque a linguagem poética contribui para a edificação e grandeza da pólis, ainda que aos gestores da pólis não lhes interesse a intervenção subversiva da poesia como objeto transformador de mentalidades. A poesia abre campos de intervenção onde poderes negacionistas são denunciados. Escrever poesia, ler poesia, assistir e participar em espetáculos de poesia é, desde sempre, um ato político, um megafone da liberdade de pensamento. E isto assusta todos aqueles que desprezam a sensibilidade poética porque coloca em perigo a eternização do poder não democrático das falsas democracias modernas que só o é porque alimenta e promove a ignorância. E os meios de comunicação audiovisual são o exemplo gritante da estupidificação e infantilização do telespectador ao impingir-lhes produtos de péssima qualidade com roupagens que são um insulto a qualquer manifestação artística. Os grandes alimentos espirituais estão compartimentados num espaço televisivo de audiências mínimas que os mercados desprezam do alto da sua hipocrisia sinistra.
Um livro como "Beat" hoje seria passível de ter sido escrito quando tinha 20 anos, altura em que começou a publicar?
Não, não seria possível até porque me faltaria todo este tempo de reflexão sobre uma época de aprendizagem da liberdade que me permitiu entrar em diálogo com os grandes escritores da beat generation. Eles foram uma das fontes das minhas descobertas e muitas delas necessitaram de tempo para serem compreendidas em toda a sua grandeza. E só na transição da emoção do tempo para o conhecimento e interiorização de uma época é que foi possível a reflexão sobre a exaltação da experiência da liberdade através de uma literatura libertária. As ideias só surgem quando nos sentimos preparados emocionalmente para explorá-las, assumindo todos os riscos que comporta. E foi o que aconteceu quando surgiu a ideia de escrever este livro. Mas este livro só existe enquanto objeto público porque o poeta e editor D. H. Machado apostou nele para integrar o catálogo da sua editora, The Poets and Dragons Society.
Com que estado de espírito chegou ao fim de um livro marcado pelo diálogo intenso que manteve com os grandes nomes da literatura beat?
No fim da primeira versão, quando acabei o texto dedicado a Jack Hirschman, senti-me exaltado, sem peso e sem saber o que fazer a seguir. O mundo escapava-se-me. Fiquei suspenso durante algumas horas. Quando, a seguir, vi o número de páginas a rondar as 400 confesso que me assustei. Durante o labor de revisão fui tomando consciência de que tinha realizado um trabalho que estava muito próximo do que se idealiza quando se sonha com a transparência de uma certa dimensão artística. No momento em que decidi não tocar mais no produto acabado, assaltaram-me todas as dúvidas do universo e decidi não olhar mais para ele até que fosse publicado. Mas a verdade é que durante esse período pensei nele todos os dias. Por um lado, acreditava que tinha atingido um ponto alto da minha literatura, homenageando aqueles que me levaram a conhecer distintos aspetos da liberdade e da liberdade de criar; por outro, receava ficar aquém do que idealizara. Contudo, não me deixou de surpreender quando o livro foi galardoado com o Prémio Ulysses 2021 e, mais tarde, com o Prémio Internacional Cesar Vallejo. Neste caso, como noutros, a felicidade encerra sempre muitas dúvidas. E é efémera. Então, o melhor é partir para um novo projeto e ele surgiu no formato de Commedia.
O termo "beat" tem múltiplos significados. Qual o que, do ponto de vista pessoal, lhe parece mais certeiro?
Como o Sérgio sabe, o termo «beat generation» foi introduzido por Jack Kerouac que logo acrescentou novos significados ao que era entendido como «beat». Essas novas conotações como «upbeat», otimista, ou o «beatífico» remetiam para uma nova maneira de estar «on the beat», ou seja, estar no ritmo, na batida do jazz. E é este o significado que mais aprecio e que me parece ser o mais certeiro: beat como batida, estar no ritmo, da liberdade pela estrada fora, pelo mundo fora, por dentro de nós fora. Beat ou a nova consciência do ritmo libertário.
Apesar da sua conhecida aversão em filiar-se em estéticas ou correntes, é um particular devoto da poesia "beat". Considera que foi uma das derradeiras revoluções literárias da contemporaneidade?
Creio que sim. Creio que terá sido a última grande revolução na literatura com a sua ficção, com a sua poesia e com o seu pensamento. Estão na origem do movimento hippie e do que se entende hoje como contracultura. A década de 60 do século passado (mas também a de 70) é marcada indelevelmente por esta marcha da liberdade que nos deu projetos culturais inovadores e estimulantes em todos os domínios artísticos. Foi um grande movimento global de contestação social e de valores nitidamente anticonservadores e que contribuíram, até na sua nova forma de comunicação de massas, para um novo olhar sobre as sociedades ocidentais. E muito do que somos hoje a esse movimento o devemos.
Apesar de todos os dramas e vicissitudes, a vida continua a ser uma "Commedia", como intitulou o seu próximo livro?
A vida continua a ser uma comédia como um palco de enganos, de equívocos, de ambiguidades. Mas, no caso do meu próximo livro que sairá no fim de março, uma comédia de vaidades coladas ao poder que renuncia observar as mudanças radicais pelas quais o mundo está a passar. É no choque dessas visões do mundo que várias tribos de jovens de várias latitudes desafiam os valores obsoletos das sociedades ocidentais que se creem espelho e exemplo para infetar universos culturais diferentes cujas realidades têm pouco a ver com as normas que o Ocidente quer impor. E nesta "Commedia" mostrar-se-á que a grande maioria das pessoas adultas têm como objetivo criticar por desconhecimento as novas gerações que optaram por novas linguagens e por uma nova sustentação para a sua vida futura e que por ela não passam os estigmatizados valores burgueses que as sociedades ocidentais defendem como pilares que fazem das chamadas democracias, ditaduras veladas onde a corrupção é a moeda de troca para a sobrevivência confortável dos medíocres. E isto não deixa de ser uma Commedia.
A história da literatura está repleta, como bem sabemos, de autores esplêndidos que não eram seguramente pessoas estimáveis. Dissocia facilmente essas duas vertentes ou, para si, é importante que a escrita contribua também para um aperfeiçoamento das qualidades humanas?
Os artistas nunca foram pessoas estimáveis na sua época. Há pintura genial pintada por tipos cujos comportamentos sociais são pouco louváveis aos olhos de uma cultura judaico-cristã e cuja obra é adquirida pelo poder. Assim como há escritores geniais em cujas obras contribuíram para um aperfeiçoamento das qualidades humanas, como diz, e que foram indivíduos pouco aconselháveis no seio de todos os tipos de hipocrisia que as sociedades burguesa já não conseguem esconder. Nem este tipo de sociedade em que hoje vivemos deixa que os seus artistas sejam pessoas estimáveis, até porque são o alvo mais fácil de agressões e violações e quando se quer dar exemplo de «um mau exemplo» recorrem aos comportamentos dos artistas. É uma falácia. A obra e o autor não são dissociáveis, por muito que isso dê jeito a uma certa crítica que cria monstros a favor da grande mediocridade que habita o mainstream. O escritor não tem de ser um moralista, mas um observador do tempo histórico que narra e, se reparar bem, aquilo que é transparece na sua obra. Se contribui ou não para o aperfeiçoamento das qualidades humanas só o tempo dirá. O escritor é um destruidor de limites e neste aspeto cria uma onda de desassossego que a sociedade burguesa não perde tempo em criticar e combater até porque é a sua essência que é posta em causa.
