Meio editorial e literário português rejeita a figura do "leitor de sensibilidade"

Conteúdo de livros célebres tem vindo a ser alvo de mudanças
Pedro Granadeiro/Global Imagens
Os alarmes soaram nos últimos meses e, desde então, os seus ecos ainda são bem audíveis: excertos, considerados ofensivos ou inapropriados, de livros de autores como Roald Dahl, Agatha Christie ou Enid Blyton têm vindo a ser expurgados dos mercados anglo-saxónicos e substituídos por termos mais suaves e politicamente corretos.
Essa operação de reescrita está a cargo dos designados "leitores de sensibilidade", uma figura editorial cuja função consiste em rever e eliminar todo o conteúdo que possa ser considerado potencialmente ofensivo à luz dos novos tempos.
Por cá, a avaliar pelo coro afinado de críticas, o cenário de uma interferência direta em obras de escritores falecidos parece distante, mas isso não significa que os autores nacionais fiquem à margem de uma tendência que muitos já apelidam de "revisionismo literário" ou até "vaga censória".
Há poucas semanas, o escritor Afonso Reis Cabral partilhou uma carta de um editor dos EUA que justificava a recusa da publicação dos seus dois romances com base no conteúdo alegadamente "problemático", pelo menos aos olhos de parte dos leitores locais. Em particular, "Pão de Açúcar" - romance em torno de Gisberta, a transexual brasileira assassinada por um grupo de adolescentes no Porto, em 2006 - por "ter como autor uma pessoa cis a falar sobre uma pessoa trans".
Editor da Exclamação, Nuno Gomes admite que hoje "há barreiras que não existiam", provocadas por "uma onda de nivelamento por baixo", mas "se tivesse editado qualquer das obras mencionadas [de Roald Dahl, Agatha Christie ou Enid Blyton] nunca as alteraria só porque um bando de normalizadores dos costumes o exigia".
Na origem dessa caça ao (suposto) insulto estão problemas muito mais fundos, acredita Nuno Gomes: "O autor navega hoje por mares desconhecidos, em que uma simples palavra o pode crucificar de morte, porque há uma espécie de polícia atrás de cada ecrã de computador pronto a cuspir impropérios normalizantes quando a maioria das vezes são eles próprios ofensivos".
motivos económicos?
A preocupação sobre o processo censório em curso estende-se aos grupos editoriais. Para Cláudia Gomes, da Porto Editora, os leitores que exigem uma retificação das obras literárias ignoram que elas "foram escritas noutras circunstâncias históricas e sociais, pelo que devem ser analisadas à luz desse contexto e não em função de valores que defendemos atualmente".
Do lado dos escritores, a preocupação é o sentimento dominante. Há nuances nas reações, todavia. Se António Mota diz esperar que "a ideia peregrina de retalhar, censurar, esconder passe rapidamente de moda", Bruno Vieira Amaral vê neste fenómeno contornos mais económicos do que ideológicos, por tentarem ajustar obras clássicas "à luz das sensibilidades contemporâneas". "Se realmente considerassem que aquilo que os autores escreveram é moralmente inaceitável, teriam de, em nome da coerência e desses elevados padrões morais, recusar pura e simplesmente a sua publicação", diz.
Para o autor, "a decisão de expurgar expressões problemáticas" nem será a mais grave para "a diversidade e a liberdade artísticas". "Um mercado concentrado em poucos grupos editoriais é mais perigoso", critica.
O recurso aos "leitores de sensibilidade" é uma prática que Tânia Ganho tem dificuldade em aceitar, convicta de que "a arte pode e deve questionar, incomodar, suscitar debate". A presença num romance de uma ou mais personagens com condutas moralmente repreensíveis poderia, diz a autora de "Apneia, "ser um excelente ponto de partida para analisarmos a fundo problemas sociais graves e criarmos uma sociedade mais justa".
Escritores estão entre a indignação e a perplexidade
Tânia Ganho
Escritora e tradutora
Inquieta-me que seja cada vez mais difícil debater ideias, que haja uma enorme incapacidade de dialogar e aceitar perspetivas divergentes, o que gera em alguns editores o receio de publicarem determinadas obras.
Bruno Vieira Amaral
Escritor
É um perigo deixarmos que essa gente retalhe, omita, acrescente o que um autor publicou em vida. Tudo tem o seu próprio caminho, tudo tem a sua história, a sua época, que devem ser respeitados. Ponto final.
António Mota
Escritor
O que temos, na maior parte dos casos, são empresas orientadas para o lucro que querem vender livros escritos há várias décadas e que, com esse objetivo, promovem alterações de forma a expurgá-los de expressões polémicas.

