"Durante centenas de anos, o notável Vicente Lusitano foi esquecido. Mas agora, finalmente, tanto a sua música como a sua história estão a ser de novo escutadas." Artigos publicados na BBC e em "The Guardian" estão a trazer o compositor português do século XVI para a ribalta.
Corpo do artigo
Durante a pandemia, dois amantes da música renascentista descobriram separadamente Vicente Lusitano. E estão a fazer concertos e a lançar gravações do seu trabalho. Enquanto isso, uma nova peça que reimagina uma composição do português está atualmente em digressão pelo Reino Unido.
O grupo vocal The Marian Consort vai lançar um álbum no outono com música de Lusitano. O coletivo britânico também se uniu à organização Classical Remix para criar uma instalação sonora, intitulada "Lusitano remixed", para galerias de arte e salas de concertos no Reino Unido. No contexto da instalação, o cantor de ópera e compositor Roderick Williams foi contratado para escrever a sua própria resposta à "Inviolata" de Lusitano. Em oito altifalantes dispostos em círculo, um para cada cantor, com o intuito de gerar uma experiência imersiva, fez a sua primeira experiência na Capela Samuel Worth, em Sheffield.
Tudo começou quando Rory McCleery, fundador de The Marian Consort, leu um artigo sobre Lusitano escrito pelo académico Garrett Schumann, da Universidade de Michigan, na publicação "VAN Magazine". E descobriu que "Liber primus epigramatum", a coleção de motetos de 1551 de Lusitano, tinha sido digitalizada e colocada online.
Paralelamente, no Reino Unido, num cartaz tuitado dos protestos do movimento Black Lives Matter, em Nova Iorque, o maestro britânico Joseph McHardy encontrou o nome de Vicente Lusitano escrito num cartaz. Um nome que nunca tinha lido ou visto na sua vida académica. Decidiu então seguir o seu rasto. Arrebatado pelas suas composições, McHardy está de momento a fazer uma digressão com o coro Chineke Voices intitulada The Music of Vicente Lusitano.
Quem foi Vicente Lusitano?
Vicente Lusitano nasceu por volta de 1520 em Olivença, à época território português. Uma fonte do século XVII descreve-o como "pardo", um termo usado para mestiços. Segundo os historiadores, o mais provável é que Vicente Lusitano tenha tido mãe negra africana e pai branco português.
Lusitano tornou-se padre católico, compositor e teórico musical. Em 1551 deixou Portugal e rumou a Roma, à época capital musical e multicultural da Europa, provavelmente seguindo um rico patrono, o embaixador português Lencastre.
Vicente Lusitano publicou uma coleção de motetos: composições corais sacras, polifónicas (isto é, em que as vozes cantam várias camadas de melodias independentes em simultâneo).
Em Roma, o português envolveu-se num debate público sobre as regras de composição e o uso e justaposição de diferentes sistemas de afinação ou chaves com um compositor rival, o italiano Nicola Vicentino. O júri era composto por artistas do coro da Capela Sistina. Lusitano foi unanimemente declarado vencedor. Todavia, no que se tornaria um famoso tratado impresso de 1555, Nicola Vicentino fabricou uma outra versão do debate e foi esse documento que perdurou, repetido em muitos livros didáticos.
Dos poucos dados biográficos que se sabem sobre Vicente Lusitano consta que em 1553 se terá convertido ao protestantismo, casado e mudado para a Alemanha. Há também registo de alguns pagamentos pelas suas composições e da candidatura a um emprego em Estugarda.
Embora as suas concretizações em Roma sugiram que Lusitano ganhou um respeito significativo pela sua música, esta não foi tão amplamente copiada ou executada como alguns dos seus contemporâneos.
Alguns levantam a hipótese de que poderá ser Lusitano o primeiro compositor negro publicado de que há registo.
Interesse nacional
Em Portugal, não se pode dizer que Lusitano seja um nome desconhecido. Maria Augusta Barbosa (1912 - 2012), considerada a mãe das ciências musicais em Portugal e a primeira portuguesa a tirar um doutoramento na área, dedicou grande parte da carreira e o doutoramento a Vicente Lusitano. Assim como outros musicólogos portugueses.
O ensemble vocal Capella Duriensis, dirigido pelo maestro Jonathan Ayerst, tem uma gravação "Heu me domine" de Vicente Lusitano, registada em 2014. O compositor foi dado a conhecer ao maestro por um amigo que lhe enviou a gravação feita por um ensemble belga.
Cantar a música de Lusitano é fazer "um número de equilibrismo acrobático. É um maravilhoso veículo de treino para os cantores", disse Ayerst sobre a trabalhosa missão. "As harmonias dissonantes são tão expressivas e tão despidas de tons para nos orientarmos que se alguém falha tudo se desmorona como um baralho de cartas", explica o maestro ao JN.
"A música dele e a sua teoria são extremamente avançadas para a época. Só consigo encontrar algo semelhante na música atonal de Schönberg no período de 1910-1914", elucida.
O tema da raça, para Ayerst, "não muda a sua música. Penso que talvez não tenha sido mencionado porque não era relevado no ambiente multicultural da época".
Toda a música portuguesa deste período renascentista é "muito madura porque chegou tardiamente. Começou em Itália, Alemanha e só mais tarde chegou a Portugal. Os motetos de Lusitano eram extraordinários". Um dos desejos de Jonathan Ayerst é que seja do conhecimento público o extraordinário património da música renascentista portuguesa.