
Javier Marías: 1951 - 2022
D.R.
No romance ou na crónica, Javier Marías nunca se deixou tentar pela banalidade.
A recente e abrupta morte de Javier Marías veio acrescentar um nome à já numerosa lista de escritores injustamente ignorados ao longo dos anos pela Academia Sueca. Mas, talvez mais chocante ainda do que a privação do Nobel da Literatura, seja a constatação de que o autor espanhol estava, aos 71 anos, ainda longe do ocaso criativo que por vezes a idade traz.
Basta lermos a reunião das suas crónicas no "El Pais" no volume "Será o cozinheiro boa pessoa?", agora publicado pela Relógio D"Água, para vermos que, até mesmo numa publicação periódica, a banalidade se recusava a ditar leis em tudo quanto tinha a sua assinatura.
Acima de tudo, são textos nos quais transparece o crescente desconforto e até alguma impaciência em lidar com algumas das marcas basilares do nosso tempo. Como a polarização crescente de opiniões, a mediocridade latente da classe política e o culto do ego, exponenciado até à sua infinita potência pelas redes sociais.
Atravessadas por uma visão sombria da realidade, estas crónicas devem ser lidas como um manifesto cívico de quem, embora não se julgasse o detentor absoluto da verdade, atribuía ao escritor um papel de intervenção que não se circunscrevia às páginas dos livros.
Se a realidade nos entra pelos olhos adentro em "Será o cozinheiro boa pessoa?", "O homem sentimental", por seu turno, convida-nos a uma suspensão do tempo, através de uma escrita em que a influência de Marcel Proust é notória.
Inicialmente publicado em 1986, este breve romance editado pela Alfaguara assenta num triângulo amoroso composto por um cantor lírico, uma enigmática mulher e o seu marido, um banqueiro pouco compreensivo. De permeio, encontramos outras personagens igualmente esquivas, como um secretário artificioso ou evocações de fantasmas amorosos que se recusam a ser enterrados.
Romance de insinuações mais do que de ações, este é o testemunho de um escritor para quem a razão, ao contrário do que por vezes pretendemos, raras vezes ordena.
