
A procura do absoluto e a superação dos medos dominam a poesia de José Emílio-Nelson
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José Emílio-Nelson prossegue a sua sanha poética com um desarmante volume duplo, intitulado "Putrefação e fósforo/Coração cru" (Abysmo), que se insinua eficazmente no leitor.
Poeta do confronto e do questionamento, que troca de bom grado os consensos vãos pela vontade de expor o que é insistentemente ocultado pela vontade dominante, José Emílio-Nelson (Espinho, 1948) é um caso especial na literatura portuguesa.
Desde a estreia em livro, no ano de 1979, com o livro "Polifonia", tem vindo a trilhar um caminho cuja fortíssima identidade própria, concentrado poderoso de influências muito alargadas, pode ser resumida a uma procura plena do absoluto.
Testemunhamos essa mesma liberdade invulgar de numerosas formas: na inventividade formal, na convocação (e respetiva contaminação) do sagrado e do profano, na sexualidade vista como destemperada ou até nas profusas referências a elementos da escatologia.
Não há nesta multiplicidade de referências qualquer indício de gratuitidade ou vontade de chocar os mais suscetíveis. O que move o poeta é a necessidade de contacto com o desconforto, lugar continuamente desconsiderado enquanto vetor precios para o conhecimento individual.
Depois de, em 2016, ter reunido os primeiros 35 anos de criação poética no volume "Beleza tocada", Emílio-Nelson acrescenta e aprofunda novos elementos à sua obra no duplo volume "Putrefação e fósforo/Coração cru".
Emoldurados pelos desenhos não menos desafiantes de Bárbara Fonte, estes fragmentos (sob a forma de versos, reflexões, prosa poética ou elementos teatrais), "numa ordenação de puro azar", contêm abundantes e enérgicos apelos à ação numa época em que o medo dita leis.
"Frente ao pior, entre o espetro dos mortos, a Alma ri-se da alma e ri-se / Do que a desflora, e a sustenta, e a intrinca, e a aniquila de ciúme de Deus", escreve o poeta num dos incontáveis acessos (anti) bíblicos que encontramos no livro.
Nesta "estética das heresias", como já foi definida, o que move o autor é a tentativa de "desdourar a poesia", extraí-la dos seus redutos estreitos e colocá-la em contacto (carnal, de preferência) com a própria vida.
Para lá dos princípios e julgamentos morais, para lá dos conceitos redutores do Bem e do Mal, esta é uma poesia que se alimenta dos excessos e reconhece a importância do irracional no destino dos Homens, sem, todavia, se deter em nenhuma paragem que implique perda de liberdade.
