Novo livro de Valter Hugo Mãe, "Contra mim", é uma viagem surpreendente pela sua própria infância. Um exercício "apaziguador", garante o escritor, que revela ter aproveitado o confinamento para baixar os níveis de ansiedade.
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Muito antes de ser "um homem imprudentemente poético", já Valter Hugo Mãe se deixava tentar pelo espanto. É o que vislumbramos no seu novo livro, "Contra mim", uma viagem pelo território da sua infância que recusa a nostalgia. À conversa com o "Jornal de Notícias", o escritor, de 49 anos, diz ter utilizado a pandemia para libertar-se da ansiedade que o consumia.
Este livro é uma procura da infância. Chegou ao fim com a certeza de ter ficado mais próximo dela?
Talvez seja estranho, mas vejo-o muito mais como uma auscultação do futuro. O regresso a esse passado é mais um deitar a mão aos princípios basilares daquilo em que um dia acreditei do que uma forma de nostalgia. Não sou o menos nostálgico dos homens, mas não me interessaria nada voltar atrás. Interessa-me entender como é que os factos que rodearam a minha produziram o fascínio pelas palavras e a necessidade de escrever.
Este é um livro que não existiria sem a pandemia?
É verdade. Alguns textos estavam escritos e podiam resultar num compêndio avulso e fragmentário que poderia ter interesse mais adiante. Era uma espécie de anedotário sobre a minha vida. Mas esta reclusão por que passámos obrigou-me a sentir a necessidade de medir a que distância estou daquilo em que acreditei. E creio que o regresso à infância era o recomeço essencial.
Saiu desse exercício introspetivo com alguma certeza?
Saí mais apaziguado. Resultou em mais do que o objeto entretido que pode ser o livro. É muito mais complexo. Muito mais do que encontrar respostas, talvez me tenha sido essencial voltar a colocar as mesmas questões sobre o que verdadeiramente quero e aquilo em que acredito. É por isso que vejo o livro como um exercício de esperança, de encontrar caminho para o que vem depois.
Teve uma infância povoada de gente e de afetos. Em que sentido foi moldado enquanto ser por isso?
Foi muito marcante. A começar por ser o filho mais novo e por estar rodeado por pessoas mais velhas que eram convocadas mais vezes para o mistério da vida. Na verdade, eu não era preciso para nada. Essa dimensão de espera, de paciência, marcou-me até hoje. Essa super-proteção também pode esconder-nos do mundo. Protegerem-nos do mundo também é adiarem-nos, não permitindo que o mundo nos aconteça no tempo certo.
Ainda lhe acontece muitas vezes ter saudades desse olhar inaugural sobre as coisas que a infância traz?
Sim, e foi esse o propósito do livro: a intenção de regressar a esse primeiro encanto, a esse primeiro espanto. E, ao mesmo tempo, a primeira vontade de prometer a mim mesmo, de estar comprometido com um objetivo, de distinguir sem hesitação o que é bem e o que é mal. E ser cristalinamente dessa forma. Não é tanto ter saudade da criança, mas a ciência que essa cidade continha, o poder auferir de um conhecimento que a infância nos dá e a idade adulta nos vai retirando.
As infâncias são hoje muito mais protegidas. O que se ganha em segurança, não se perderá em descoberta?
O que se pode tornar grave nas gerações futuras é a limitadíssima experiência do corpo. Não sei o que esperar de uma geração que pode aceder a todas as informações de um modo virtual mas nunca enfrentou fisicamente experiência nenhuma.
É a imaginação que fica em risco?
Podes erradicar a imaginação, desligá-la da experiência física, mas o corpo inteiro imagina-a. O corpo inteiro é um coletor sensorial que nos fornece dados. Se desligarmos o corpo do mundo, a imaginação vai claudicar, perigar, não somos capazes de arriscar com sucesso plausível. Não há literatura capaz de nos suprir essa contingência de termos corpo. Os miúdos deste ano estão a ser ainda mais roubados à fortuna de ter corpo e de colocá-lo à disposição do mundo.
O fim da infância não será a nossa primeira morte - no sentido em que há quase sempre daí em diante uma recusa desse imaginário?
É mesmo do foro da morte que se trata. O estágio para a idade adulta cria uma repulsa intensa pela infância. Quando somos ainda miúdos mas não adultos, o que mais nos ofende é que nos tratem como crianças. Queremos à força toda perder a infância em absoluto. E só mais tarde talvez possamos verdadeiramente colher da infância o que ela tinha de esplendoroso.
A escrita, a poesia e os livros são uma forma de prolongar a infância?
A escrita é um território de contínua virgindade, é uma infância eterna. Na arte, o mestre está sempre no lugar da criança. É pelo espanto que corre, pela perplexidade. Se o artista não for espantado por aquilo que faz, não fez nada de mais, provavelmente. Não ocorreu arte. A arte é um parente da infância. A poesia no meu percurso substituiu tudo o que não tive, serviu para ir aos lugares onde não fui, e serviu para ser uma infância concreta
Quando se é pequeno, como escreves no livro, o fim da rua já é visto como Espanha e a Póvoa de Varzim parece tão vasta como a França. Que perdemos ao certo quando o mundo deixa de nos parecer tão grande com o passar dos anos?
Perdemos a capacidade de acreditar. O maior empobrecimento que o tempo nos traz é a desconfiança.
Lendo o livro, percebemos que a crença no divino ou fantástico sempre foi muito forte. A razão nunca lhe bastou, foi suficiente?
Nem hoje basta. A razão não pode tudo. Se pudesse, não existia poesia. Como digo na "Desumanização", acredito que foi através da poesia que Deus escreveu o Mundo. As coisas concretas não esgotam nada. Muito pelo contrário. São apenas os limites mais imediatos. Só através da poética, da imaginação, é que vamos muito mais além.
Os medos e as inseguranças marcaram muito a sua infância. Até que ponto os livros, a música, arte e poesia o ajudaram a superá-los?
Muitíssimo. Quando lia certos livros, ainda muito menino, encontrava identificação e um crescendo de coragem para enfrentar as tropelias, o susto. Vinha de uma casa enorme em Paços de Ferreira que julgávamos assombrada, com ruídos estranhos, e isso deixou em mim uma impressão que estávamos acompanhados por fantasmagorias predadoras. Lembro-me que foi através dos livros, de alguns livros, que me fui desfazendo desse medo mais irracional. Ainda hoje, a cada passo da vida, encontro num verso uma estrutura em que possa confiar, como se o estado da poesia fosse uma instalação espiritual em que possa acreditar.
Quão diferentes são hoje os teus medos dos desse tempo?
Talvez não sejam muito diferentes e continue a padecer da fobia da solidão, de perder as pessoas que amo, de desconhecer a família, de ser impedido de escrever ou reconhecer as palavras... Continuo a fazer as minhas coleções de palavras, à procura de um certo milagre que elas nos ofereçam.
O que há ainda hoje de comum entre o escritor que consegue comover plateias e o rapazinho coberto de medos?
Houve uma deriva, mas, por mais que essa criança se possa ter afastado de mim, ela continua tremenda dentro de mim, existe com uma força muito clara. Por vezes tenho a sensação de que me apercebo menos do envelhecimento porque não tive filhos. Nem sempre acredito que sou tão adulto como isso. Talvez não tenha necessidade de o ser perante ninguém.
A perceção que tinhas de ti na infância mudou muito com os anos?
Claro que sim. Neste livro procuro recuperar o pensamento da criança como ele seria, com a capacidade de fantasia e muita ilusão. Mas, por mais que veja agora como estava longe da verdade concreta, continuo ainda hoje fascinado com a imaginação e a poética, mais do que a necessidade de ganhar prova. A prova está no sentimento, na forma como sentimos a emoção das coisas. Esse é o território da nossa grande verdade. Coincido com a criança que fui, sendo emotivo e sensível ainda hoje.
É por este ser um livro que, como já disse numa entrevista, lhe causa ansiedade e o coloca em perigo que resolveu intitulá-lo de "Contra mim"?
Também. Vivemos num país pequeno onde tudo é inusitado. A mínima exposição é condenada. O presidente Marcelo tira a camisa para ser vacinado e isso levantou uma onda de protestos. A mim, pareceu-me a coisa mais normal do mundo. E que bom quando um presidente reclama para si a normalidade. Devíamos agradecer-lhe por isso e não por querer apresentar-se como um herói de guerra ou super-homem. Neste livro, tenho a noção de que quem não gosta de mim irá divertir-se. Mas escrevo pelos motivos que me importam, não contra mim, mas contra todos.
Mesmo sob a capa da autoficção, este é o livro em que se expõe mais?
Sim, sim. Uma autobiografia é uma coisa impossível - ninguém consegue escrever sobre a sua vida. É um artifício diante do que a vida é. Nesse sentido, "Contra mim" é uma ficção mas assenta na factualidade da minha infância. Da mesma maneira que se pergunta o que há de biográfico na ficção, podemos inverter a questão neste livro. É mais um itinerário do modo como percecionei as coisas do modo como elas acontecer,
Com a passagem dos anos, as figuras marcantes da nossa infância de que perdemos o rasto transformam-se em personagens de ficção?
Vamos fantasiando com elas, sim. É inacreditável e até comovente o modo como as recuperamos. No livro falo de uma fotografia que me foi tirada no fim da escola primária. Há uns meses consegui o contacto do fotógrafo. Ele não se lembra de mim: fotografou milhares de crianças. Mas só o facto de se falar com o senhor que fez o meu retrato com oito ou nove anos de idade é incrível.
Já tinhas recorrido a alguma dessas figuras da infância para a construção de um dado personagem num livro?
Lendo o livro, é fácil perceber como a minha própria vida foi sendo convocada para as ficções. Isso acontece sobretudo em "O meu reino", o meu primeiro romance, em que tinha menos defesas e deitei mais mão de coisas autobiográficas. Hoje, há mais camadas, as semelhanças ficam mascaradas. Mas o arranque da "Desumanização" tem muito a ver com o meu irmão Casimiro, que já estava morto e eu continuei a achar por muito tempo que podia voltar à vida.
A figura materna está muito presente no teu livro e na tua vida. Somos sempre filhos de mil homens, mas de apenas uma mãe?
Não consigo pluralizar a minha mãe. É-me mais fácil ironizar o papel dos pais do que o das mães. Tenho uma relação fascinada e hiperprotetora com a minha mãe. Ela é um padrão que propende para uma delicadeza e vulnerabilidade que me compele para uma proteção, enquanto os pais me parecem mais robustos e até criticáveis.
Mas são, na maioria dos casos, a força motriz de uma família.
Porque são muito mais incondicionais. O seu compromisso é muito mais irracional. Importam-se menos com o fazer sentido e estão mais interessadas em fazer com que as coisas não se desagreguem e que eventualmente possamos ser felizes.
Sabia-se pouco dos seus anos pré-Caxinas. Fê-lo agora por causa dessa reflexão a que se obrigou ou foi mais do que isso?
Foi uma função meditativa, não teve a ver com alguém ler e intuir o que fosse. É verdade que estar nas Caxinas desde os 10 anos me associa a este lugar, mas na minha cabeça o período que passei em Paços de Ferreira foi essencial. Por vezes, meto-me no carro e vou até lá percorrer os locais em que cresci. Há uma inteligência naquele lugar que me conforta, comunica comigo. O lugar em si é como se fosse alguém que conheço e me faz bem. É-me recompensador que o livro faça justiça a esse lugar onde também fui muito feliz
Acha que vamos sair disto melhores como seres?
Infelizmente acho que vamos cair no mesmo erro e podemos até incorrer em riscos maiores, com o advento do neofascismo, o populismo elevado ao extremo como está a acontecer. É algo que me preocupa e prefigura um futuro tenebroso a médio prazo. Não estou nada otimista com o clima e a auto-estima do país nos próximos tempos. Sempre disse que queria sair melhor do confinamento. Vinha sofrendo de ansiedade, desenvolvendo uma exaustão que me estava a angustiar. Assim que criei uma rotina e consegui sanar essa ansiedade prometi a mim mesmo que não iria voltar a fazer a mesma coisa
Conseguiu libertar-se de todos os compromissos.
Tinha oito ou nove viagens marcadas para esse período e estava numa pressão imensa para acabar um romance. Estava aflito como conseguiria apanhar tantos aviões, com uma dor de cabeça pelo meio que era resultado da exaustão e de repente poder ficar em casa sem dar satisfações a ninguém, foi perfeito naquele momento. Precisava mesmo daquilo. Em 2020 não saí de Portugal, o que não acontecia há 20 anos. Não passava 30 dias seguidos em casa.
Os eventos online vieram provar que a deslocação nem sempre é obrigatória.
Tudo isso veio provar que o que nos estava a acontecer obrigava um empenho tremendo. Estávamos viciados nessas metodologias. Foi essencial ficar quieto.