"Room with a view", dos franceses Rone, (La) Horde e Ballet National de Marseille, inaugura no dia 20 os Dias da Dança online. É a peça petardo do festival.
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Primeiro vamos impressionar-nos com o espaço e depois, já a suspeitar dos sentidos, perguntamos o que estamos a ver: é uma pedreira babilónica, um imenso altar que se vai desmoronar, uma estação lunar montada num meteorito à deriva, um navio fantasma feito de mármore maciço que encalhou, uma imensa pedra tumular? Até ao fim não saberemos, mas sentimos que tudo aquilo naquele cenário é titânico e brutal.
Depois vamos abalar-nos com o movimento. O que estão aquelas pessoas em permanente correria a fazer: festejam, lutam, marcham, rezam, protestam, praticam canibalismo ou estão só a tentar fazer amor? Tudo isso e fazem mais: revoltam-se e resistem. E estão a dançar.
Estudo minucioso e múltiplo das várias formas de expressão da revolta popular e da rebelião grupal, "Room with a view" é uma co-criação do DJ e produtor francês de 40 anos Rone com o coletivo coreográfico (La) Horde e 20 bailarinos do Ballet National de Marseille. É o bailado urbano que abre no dia 20, em transmissão gratuita e online, o festival Dias da Dança 2021. É uma peça petardo, um violento festim para os sentidos.
Transformar em ação a violência
Toda a peça, que foi estreada em março de 2020, a dias do mundo inteiro entrar no encarceramento da pandemia, é atravessada pela ideia de movimento e força. Esta força pode ser atrativa ou repulsiva dependendo do sinal das cargas. É atrativa se as cargas tiverem sinais opostos; é repulsiva se as cargas tiverem o mesmo sinal.
"Queríamos contar a história de um grupo cuja festa é interrompida por um colapso, mas que, para poder estar à altura dos desafios do nosso tempo, tem que transformar em ação a violência que impede a vivência em comunidade", dizem os fundadores da (La) Horde, Marine Brutti, Jonathan Debrouwer e Arthur Harel. "Se encenamos a violência, não é para glorificá-la, é para a questionar. Contribuímos com o que sabemos fazer: com o poder da música e com a energia que os nossos corpos carregam".
Ali, onde assistimos à elétrica erupção da rebelião num ambiente de fim de mundo, 20 intérpretes - eles são a horda, a caterva, são uma quadrilha errante e bem poderiam ser um grupo indisciplinado de ladrões - oferecem-se transidos a uma coreografia em crescente vibração. É a dançar que vão questionar o caos do mundo que estamos a ver. O modo como o fazem, em contorções virtuosas que nos assaltam e nos impelem a querer participar, ecrã adentro, às vezes com a velocidade das flechas, outras em assombrosos ralentis e amortis, é magnética e fascina.
Os significados políticos da dança
Dizem os de (La) Horde: "A inspiração veio de diferentes contestações recentes, desde a Rave for Climate até ao movimento lançado pelo coletivo de mulheres chilenas Las Tesis em torno da sua canção "Un violador en tu camino", cuja coreografia de 2019 se espalhou pelas manifestações feministas do mundo", transformando-se, como que movida por um vírus, num hino global. Mas também se inspiraram nos hooligans, nos gestos sinuosos dos pregadores, no circo, na acrobacia, nos jogos aéreos de pernas do jumpstyle, nas intifadas contra a ocupação. "Sempre quisemos questionar o espectro de significados políticos da dança", dizem, e "a dança é um vetor de mobilização poderoso que permite transcender clivagens".
Sem recorrer a palavras, com o discurso transferido para o movimento que mapeia diversas formas coreográficas, a música é transcrita no idioma IDM (Intelligent Dance Music) e na eletrónica clássica pós-rave pré-milenar. Nas suas acelerações graves e ambientes crepusculares, é o centro motor da ação - e Rone, o compositor, está sempre em palco a fazer de extasiado e de estereótipo de DJ; primeiro parece um burocrata, depois um ciclista; mais do que uma vez é levado em braços pela horda, transportado como um corpo-cruz.
O que vemos ao longo de uma hora e seis minutos abrasivos é a colapsologia em estado exaltado, é toda a humanidade num lugar instável à beira do desmaio onde se está a acabar o ar, é uma epilepsia coletiva do mundo que marcha para o fim.
E no fim, debaixo do som e da fúria que nos trespassou, vemos um epilogo surpreendente: o plano abre-se, abarca toda a sala, tudo aquilo decorreu num teatro assombrosamente vazio, eles dançaram numa pandemia para ninguém. E no entanto, tudo aquilo, como nas mais espantosas e absurdas contradições, enche-nos de esperança, de exultação, e ficamos a radiar.