O jornalista e comentador João Gobern escreve sobre "Baiôa Sem Data para Morrer", obra de estreia de Rui Couceiro que elege como o romance mais marcante do ano.
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"Diz quem sabe que o avanço da idade e os compassos da vida nos trazem ponderação, nos incutem prudência, nos fornecem - tantas vezes a expensas próprias - a noção dos limites e de uma linha que devemos evitar ultrapassar, aquela que nos separa do ridículo.
A circunstância de eu estar aqui, em nome do suposto romance de estreia do Rui Couceiro (mais adiante se explicará esta caracterização, a de "suposto"), demonstra que estas aprendizagens foram, no meu caso, nulas. Porque há mais ou menos um mês e meio, pude assistir à primeira das apresentações de "Baiôa Sem Data Para Morrer", no Porto, com o autor rodeado por competentes atiçadores de expectativas e, mais do que isso, por amigos cúmplices, a Inês Maria Meneses e o Valter Hugo Mãe.
Logo aí, estava uma mensagem clara: cada um deles, Inês e Valter, faz bom uso de três nomes, o que me deixa de imediato em desvantagem, porque me circunscrevo a dois. Na busca teimosa de argumentos, lá aparece o prémio de consolação: ao autor também parecem bastar dois nomes, sem pseudónimos nem acrescentos de ocasião.
Depois, soou outro alarme: em Lisboa, este livro chegou à voz daquele que (muito justamente, sem exageros) é avaliado como um descobridor, um construtor de teias e de relações entre páginas de tantas geografias, épocas e escolas distintas - refiro-me a Alberto Manguel, um homem que anda há muitos anos a oferecer-nos mapas de tesouros e que, até hoje, nunca me levou ao engano. Desafio-vos a verem e ouvirem, numa daquelas plataformas que agora perpetua o que antes não passava do efémero, o Mestre discorrer sobre este livro. O que, se o fizerem, vos dispensa desde já de continuarem a fazer-nos companhia. Dir-se-ia, noutra época, que quem ganha a sorte grande não vai preocupar-se com a terminação.
Mais uma vez, invento uma estratégia de defesa pessoal: Alberto Manguel promete ser o porta-bandeira de "Baiôa Sem Data Para Morrer" em todo o seu vasto e múltiplo mundo. O meu compromisso é, tinha que ser, muito mais modesto, uma vez que me fico por essa tarefa nesta cidade, a minha Póvoa de Varzim.
Já terão suspeitado os mais argutos que este longo intróito é, à vista desarmada, uma maneira de adiar o mergulho no que realmente interessa e que - acredito - vos trouxe aqui. Proponho que se prossiga este roteiro de baralhar a lógica. O que me leva a dizer, já, aquilo que deveria guardar para um final com pretensões de apoteose: de todos os livros portugueses que li em 2022, este é o que mais me cativou, que mais me comoveu, que mais me inquietou, que mais questões e dúvidas me estendeu. Parte um, cumprida. Depois, de todos os livros de ficção, com origem indiscriminada e geografias variáveis, que li em 2022, continua a ocupar o lugar cimeiro, mesmo sabendo-se que o gosto é apenas isso mesmo: uma perspectiva individual.
Parte dois, arrumada. Por fim, de todos os livros - independentemente do género, da escola, do alcance, do objectivo - que li em 2022, este é o que persistentemente reaparece em destaque, sem desprimor para alguns outros. Parte três, concluída. Agora, desaguamos na dimensão em que tudo se complica, para quem já enumerou as suas sentenças: a justificação. Para meu alívio, no caso do Rui Couceiro e quando entra em campo este romance, não há apenas uma, há muitas, da essência ao pormenor. Vamos a isto... Ou, para ser rigoroso, vamos tentar lá chegar.
Se estivéssemos no sensorial e científico universo da cozinha, eu arriscaria garantir que o Rui Couceiro se muniu - o que é saber de experiência feito, mas também manifestação superior do talento - dos melhores ingredientes. E esses continuam a ser, salvo melhor opinião, as personagens. Há, neste "Baiôa Sem Data Para Morrer", um cardápio disponível que vai ficar-nos na memória por muito tempo - o Zé Patife, a Ti Zulmira, a Maria da Luz, a Fadista, o Adelino Reis, taberneiro e barbeiro, o Dr. Bártolo, mesmo a título póstumo, mais uma longa lista de secundários, que podemos considerar (mantendo a linha gastronómica na abordagem) como condimentos, mais do que acompanhamentos, quase todos unidos pelo inevitável, mas multifacetado, destino que é a morte.
Deixei de fora, para completar este quem é quem, os dois que, neste preparado (e sem ofensa para os vegetarianos), nos trazem a proteína animal, não sendo, daí em diante, útil ou agradável catalogar um como carne e o outro como peixe. O primeiro é Joaquim Baiôa que, aceitando nós o postulado da não-existência de coincidências, conquista - por mérito próprio - honras de título. Sem querer estragar-vos o prazer de o irem conhecendo, à medida que devorarem a obra ou a souberem transformar num menu de degustação (e lá vamos outra vez para a comidinha, desta vez do espírito), perceberão que só poderia ser assim: não acontece a muitos meterem ombros à tarefa de ressuscitar uma aldeia, procedendo ao que - noutros cenários léxicos - seria designado por recuperação das infra-estruturas.
Vai muito mais longe do que isso, do que os restauros de casas - Joaquim Baiôa é um construtor de pontes (e uma delas, pelo menos, no sentido literal), aplica-se a criar condições para que quem abandonou acabe por sentir o apelo do regresso, mesmo que não o concretize. Como convém aos verdadeiros sábios, fala pouco e faz muito. E, ainda por cima, é o fiel depositário do grande segredo de Gorda-e-Feia (é assim mesmo que se chama a terra em que tudo acontece, até quando nada parece acontecer).
Mas, como um jornalista, ainda que na reserva, não revela fontes e assim se furta à delação, até à premiada, não digo mais - quem quiser ficar a saber o que Baiôa sabe, só tem um caminho: ler o livro.
Os mais atentos estarão a pensar que eu me referi a duas personagens que me entregaram as chaves do romance e, afinal, só nomeei uma. Trata-se apenas de um compasso de espera, para entremear aqui um pormenor que também denuncia o interesse que "Baiôa Sem Data Para Morrer" tem motivado: quem já leu, tem decidido partir para a eleição da personagem favorita e, numa contabilidade pouco cuidada, fico com a sensação de que Baiôa, a Ti Zulmira e a Fadista ocupam o pódio. Garanto-vos que não tenho qualquer obsessão por seguir rumo à diferença mas, mesmo que não me tenha sido lançada a pergunta, voluntarizo-me para responder - a escolher só uma, eu optaria pelo narrador.
Não por ter qualquer pressentimento de que este é o perfil que mais se aproxima do do próprio autor - aquilo que poderá haver de autobiográfico neste livro fica com quem o escreveu ou, em último caso, às mãos daqueles que se disponham a aplicar neste âmbito os psicologismos, sejam eles mais sérios ou mais chegados à pacotilha. A mim, interessa-me descobrir alguém que estando numa encruzilhada, séria e pesada, da vida, acaba por se decidir por uma direcção que é, aparentemente, um beco sem saída.
Daí em diante, à sua custa e com ajudas que vão das involuntárias às explícitas, acaba por se afeiçoar a uma soma extensa de realidades que lhe são estranhas, mais do que exteriores. A sedução - nada passiva - que Gorda-e-Feia exerce sobre o narrador é, de resto, um processo milimetricamente paralelo ao da envolvência que este livro aplica a quem dele se aproxima, algo entre o transformador e o redentor.
É mesmo de redenção que quero falar-vos já a seguir. O Rui Couceiro passa à prática uma táctica que o aproxima daquela fórmula - tão cara aos economistas - do macro e do micro. Durante todo o enredo, salvo em ocasiões pontuais de localização e de uma excursão com diferentes objectivos e ainda mais diversas consequências, não saímos de Gorda-e-Feia. Mas, por artes (e não magia) do escritor, temos concentrada naquela nesga de terra quase toda a problemática que se espalha e multiplica por Portugal: a desertificação e as assimetrias do interior, o envelhecimento da população, a ruptura com profissões e formas de ganhar a vida que se extinguem todos os dias, os desequilíbrios gritantes na distribuição da riqueza, o fenómeno assustador que é o isolamento, de que deriva a solidão, os espantos - tantas vezes negativos - com que nos deparamos na partilha desigual da Saúde, da Justiça, da Segurança, a rendição (de consequências ainda imprevisíveis, a meu ver) à omnipresença das novas tecnologias, que aproximam mas também excluem, o desconhecimento que tantos urbanos mantêm relativamente ao rural e as desconfianças que muitos rurais alimentam face ao urbano.
O maior dos espantos, e a maior das conquistas do autor, não é a construção deste catálogo, nada disso. O prodigioso está na forma como o escritor nos vai lançando as pistas e nos vai convocando para a reflexão a partir de pequenos episódios, todos eles com aparência de geração espontânea, mas, em verdade, diluídos, encaixados, semeados naquilo que aparece como o bloco central - salvo seja - do novelo narrativo.
Não se trata de ensaios, de estudos, de campanhas, de panfletos, nada disso... Rui Couceiro, que é supostamente um estreante na ficção (e cá está e novo o "supostamente") aplica um dos mais significativos códigos de conduta da Literatura: polvilhar uma história com temperos que nos mobilizam e desafiam, mesmo que não demos por isso. São dois planos de um só bloco, uniforme mas não monolítico, convicto mas não dogmático, racional mas muito tocante: a nossa história é, ao menos em intersecções esporádicas, a história das personagens que vivem e morrem em Gorda-e-Feia é, afinal, uma parte das nossas histórias. E esse, insisto, é um dos ensinamentos da Grande Literatura: passar, sem sobressalto, do particular ao universal. Não está, é manifesto, ao alcance de todos.
Temos, portanto, o pratinho preparado, temperado, já com os acompanhamentos de luxo, pronto a ir ao forno. Que, desculpem-me a ASAE e os fundamentalistas, terá que ser de lenha, para poder corresponder à diversidade de sabores, de travos, de paladares expostos e ocultos que este livro nos garante. Não serei eu, mais uma vez, a desvendar os segredos do autor - até porque, apesar da inconsciência confessada no início, não gosto de me meter em assados para os quais, reconheço, não tenho mão.
Quero apenas assinalar aquilo que todos os leitores que para aqui convergirem poderão confirmar: a linguagem do Rui Couceiro é tão escorreita como naturalmente enriquecida, sem aditivos nem conservantes. É tão intensa como apaixonada. É tão irónica como sensível. É tão acessível que se torna exemplar. É outro dos iscos que, honestamente, ele nos lança.
Quero ainda alertar-vos para o ritmo ou, se preferirem, para a cadência de "Baiôa Sem Data Para Morrer". O pior que pode acontecer é alguém assustar-se com as 447 páginas que preenche e antever, munido daquele preconceito ou daquele pessimismo (ambos tão portugueses, reconheça-se), que se trata de um volume que nos é desfiado em câmara lenta.
Posso assegurar que acontece precisamente o contrário, que não há, nunca, e até porque estamos na dimensão das palavras, verbos de encher. Não há capítulos supérfluos nem episódios de exibição de literatice. Tudo é essência, por aqui.
O que me leva - enfim, suspirarão os presentes - às alegações finais. Este domínio, esta profundidade, esta ausência de intervalos lúdicos, de espaços de recreio, esta noção de tempo narrativo, só costuma ganhar-se lá mais para diante, não ao primeiro romance.
Faço batota e volto ao guru Alberto Manguel para concordar com ele, que suspeita que o Rui Couceiro tem em casa outros livros de ficção que terá escrito, para si ou para terceiros, usando este nome ou criando outros. Ou então... Ou então temos que nos resignar - e curvar - perante alguém que, por talento e trabalho, por suor e por perfume, acertou no alvo à primeira.
O que, convenhamos, poderia ser um bocadinho irritante para quem já fez passar umas quantas tentativas ficcionais directamente dos ficheiros que as acolhiam no computador para a reciclagem que sumariamente as eliminou.
A bem de todos, juro. Fica, só, reafirmado o desmentido daquela coisa que nos diz que o sol nasce para todos. Não acreditem. Como se prova pelas gravuras juntas, o Rui Couceiro e eu estamos separados por uma geração - pelo menos, sejamos conescendentes. Mas o que efectivamente nos distingue é que ele já publicou o romance que eu nunca vou conseguir escrever. Para me absolver do pecado da inveja, digo-vos que me sucedeu algo de invulgar com "Baiôa Sem Data Para Morrer": ao contrário do método de Alberto Manguel (será também por isso que ele é mestre e eu não), que leu o livro numa noite, eu dei por mim a parar de propósito embora não me apetecesse, de todo, qualquer interrupção. Só para prolongar, estender, esticar, o prazer da leitura e da minha estadia em Gorda-e-Feia. Ou, se quiserem, da estadia na minha Gorda-e-Feia.
Como, por estes dias, não há comunicação aberta ao público que dispense uma declaração de interesses, cá vai a minha, agora mesmo para fechar: conheci o Rui Couceiro há alguns anos, não muitos, em nome de um projecto a que - unilateralmente - acabei por renunciar, com a sua compreensão benevolente.
Muitos dos escritores com quem privo ou quem me cruzo confirmam aquilo que eu já sabia: que o Rui é mesmo um dos melhores, mais persistentes e mais esclarecidos, editores do país.
Fomo-nos cruzando, sempre com livro ao meio. Admirei-lhe a coragem quando ele me disse, em testemunho radiofónico, gravado para memória futura, que ia aparecer do outro lado da cortina (barreira é outra coisa, manifestamente), fazendo tábua rasa dos créditos acumulados para inaugurar a sua própria avenida do romance.
Agora, ganho consciência de que o Rui Couceiro me criou um dilema, mais um dilema, que adivinho irresolúvel - é que não sei se gosto mais do editor se do romancista. Mas também não se trata, por uma vez, de uma escolha obrigatória, porque pode perfeitamente acumular-se, sem riscos de acusação de açambarcamento. Se eu fosse da área do marketing, dir-vos-ia só que este livro é uma marca de elevado potencial. Como venho de outros sistemas operativos, prefiro afiançar-vos que é um marco para todos os que o lerem. Só se prejudica quem não o fizer. E, se a vida não é fácil e a morte é certa, como vos diria um dos carismáticos habitantes de Gorda-e-Feia, continuo a fazer fé de que ninguém nasce para perder, tendo à mão o que o ajude a ganhar. E este livro é, em várias frentes, uma enorme e irresistível ajuda. Por favor, não confundir com auto-ajuda, que aqui a única receita é a força da ternura e que a única fórmula resolvente é a de um retrato que não cabe na quietude de uma moldura.
Quando Alberto Manguel - aqui abordado pela última vez - se dedicar a uma nova edição do seu "Dicionário dos Lugares Imaginários", o dos lugares da Literatura, estou certo de que Gorda-e-Feia lá marcará presença.
Quanto ao Rui Couceiro, depois desta viagem, pode levar-me para onde quiser, que eu irei atrás dele (quase) de olhos fechados".
(texto lido a 6 de agosto na Feira do Livro da Póvoa de Varzim, na apresentação do romance "Baiôa Sem Data para Morrer")